A malta dos bairros (dos arredores de Paris aos de Londres)
Duas das séries a ter em conta na Netflix mergulham nos subúrbios de capitais europeias e nas alianças e conflitos de comunidades imigrantes, sem generalizações nem maniqueísmos. E com música entre os elementos-chave, embora de formas distintas: jazz em "THE EDDY", hip-hop em "TOP BOY".
"THE EDDY" (T1), Netflix: O arranque não é muito convidativo. Dois episódios com mais de uma hora de duração cada, marcados por um ritmo irregular e um protagonista às vezes exasperante, deixam algumas reservas quanto à minissérie franco-americana que tem sido vendida como a nova aposta de Damien Chazelle. Mas na verdade o realizador de "Whiplash - Nos Limites", "La La Land: Melodia de Amor" e "O Primeiro Homem na Lua" dirige apenas os primeiros dois dos oito capítulos e, embora seja um dos produtores executivos, não é o criador deste drama urbano com tentações de musical (neste aspecto, é coerente com a sua obra).
Os créditos de showrunner pertencem ao britânico Jack Thorne, argumentista de "Skins", "Wonder - Encantador" ou "His Dark Materials", a coordenar aqui uma equipa nascida de várias geografias - multiculturalidade aliás reflectida num retrato parisiense nada turístico. A ele juntam-se, na realização, a francesa Houda Benyamina ("Divinas"), a marroquina Laïla Marrakchi ("Marock") e o norte-americano Alan Poul (veterano de televisão que passou por "Sete Palmos de Terra" ou "The Newsroom"), e apesar da diversidade de origens e visões, a coerência formal não sai beliscada: a atmosfera realista e suja, por vezes quase documental, é um dos trunfos deste mergulho no quotidiano de um clube de jazz ameaçado pelas dívidas e pelo assassinato de um dos seus músicos, a cargo da máfia local.
Outro ponto a favor é o elenco, que junta os norte-americanos André Holland ("Moonlight") e Amandla Stenberg ("The Hunger Games: Os Jogos da Fome"), a polaca Joanna Kulig ("Cold War - Guerra Fria") ou os franceses de ascendência argelina Tahar Rahim e Leïla Bekhti (ambos do elenco de "Um Profeta"), além de vários actores amadores. Se as interpretações são irrepreensíveis, o argumento nem sempre lhes faz justiça, embora "The Eddy" não só vá melhorando à medida que vai avançando como até tem alguns episódios muito conseguidos e envolventes, à medida que aprofunda as personagens - cada capítulo foca-se numa.
"Amira", centrado na viúva do músico desaparecido, "Slim", que acompanha o empregado do bar do clube, ou "Katarina", retrato da baterista da banda, equilibram um arranque a meio gás ou as demasiadas cenas de ensaios e actuações, ancoradas num jazz ameno, para não dizer insípido - música criada especificamente para a série por Glen Ballard (produtor e co-compositor de "Jagged Little Pill", de Alanis Morissette) e Randy Kerber, este também um dos actores secundários.
Mas mesmo sem canções memoráveis, "The Eddy" sai-se bem na plausibilidade que imprime a este microcosmos revelado a partir das sintonias e crispações dos elementos de uma banda e dos que lhes estão mais próximos, com uma amálgama cultural que, ao contrário de outras ficções recentes, não parece existir para cumprir quotas de representatividade e faz todo o sentido nestas ruas de uma Paris pouco glamorosa. Um caso em que dar o benefício da dúvida compensa.
3/5
"TOP BOY" (T1), Netflix: A série britânica criada pelo irlandês Ronan Bennett (argumentista de "Inimigos Públicos", de Michael Mann) arrancou no início da década passada e teve duas temporadas no Channel 4, mas ficou praticamente esquecida até Drake se ter tornado não só um dos maiores fãs como também o grande impulsionador do regresso. O rapper tratou de se reunir com a Netflix e de propor uma nova temporada, assumindo o cargo de produtor executivo, e acabou por ser bem sucedido.
Resultado: a terceira época estreou no serviço de streaming no final de 2019 mas as anteriores também ficaram disponíveis, embora com um novo título, "Top Boy: Summerhouse", e por isso a mais recente é considerada a primeira de "Top Boy" no catálogo da plataforma. Confuso? Um bocado, mas vale a pena recuar a ver tudo desde o início.
Recuperando personagens e actores do drama protagonizado por dois traficantes de droga de um bairro londrino com uma grande comunidade negra, introduzindo em paralelo outras figuras e conflitos, os novos episódios beneficiam de valores de produção visivelmente mais elevados enquanto mantêm a crueza e o rasgo realista dos primeiros tempos, percorrendo subúrbios raramente vistos na ficção. Felizmente, não serão os últimos, uma vez que a segunda temporada (ou a quarta, se as duas de "Top Boy: Summerhouse" entrarem nestas contas), já está assegurada e deverá chegar ainda este ano.
Até lá, há tempo de (re)descobrir um olhar sobre realidades marginalizadas e desfavorecidas capaz de englobar conflitos sociais e culturais ou o fenómeno da gentrificação sem simplismos sociológicos. E a ligação à música, e ao hip-hop em particular, não se faz só através de Drake: os rappers Asher D e Kano encarnam os protagonistas, Little Simz, Dave ou Blakie têm papéis secundários igualmente carismáticos e todos contribuem para a sensação de autenticidade de "Top Boy", que nem um desenlace com algumas conveniências de argumento atraiçoa.
3,5/5