A senhora da água
Habituado a conjugar realismo e lirismo, Christian Petzold avança para territórios mais esotéricos numa abordagem muito livre ao mito da ninfa aquática Ondine. E embora nem tudo resulte, "UNDINE" está entre os filmes que justificam ir regressando às salas de cinema a partir desta semana.
"Se me deixares, tens de morrer. Sabes disso", ameaça a protagonista de "UNDINE" logo nos minutos iniciais do novo filme do autor de "Phoenix" (2014), "Barbara" (2012) ou "Fantasmas" (2005). O aviso dirige-se ao companheiro, que diz querer deixá-la, mas o espectador também esbarra logo com uma mulher aparentemente disposta a tudo, numa alusão directa à figura mítica com a qual partilha o nome - e que assassinava os amantes que lhe fossem infiéis.
Na versão do realizador alemão, Undine é uma historiadora que trabalha num museu de Berlim e mais uma mulher (sob a influência) que sucede a várias protagonistas encarnadas por Nina Hoss. Mas ultimamente a musa do cineasta tem sido Paula Beer, que já tinha brilhado no seu filme anterior, "Em Trânsito", ao lado de Franz Rogowski, com quem volta a compor um casal. E aqui brilha ainda mais, ao ser quase sempre alvo das atenções da câmara e uma das principais responsáveis pelo efeito atmosférico e enigmático do filme - não por acaso, esta interpretação valeu-lhe o prémio de Melhor Atriz no Festival de Berlim do ano passado.
Petzold não deixa a sua protagonista desamparada e oferece um retrato com muitas singularidades já habituais na sua obra, ao cruzar uma jornada íntima com o passado e o presente da Alemanha - e da capital em particular - sem uma fonteira muito clara entre o real e o onírico, valendo-se de um sentido estético cada vez mais apurado. A distância entre o pântano e a cidade torna-se mais ténue através da fotografia do cúmplice Hans Fromm e da profusão de elementos esverdeados nos cenários - da água às árvores, das portas às cortinas, passando pelos olhos de Breer. E a música de Bach consolida o efeito tão encantatório como inquietante, complementada por um design sonoro tenso, às vezes a caminho do drone.
Há muito a admirar em "UNDINE", o que o torna inteiramente merecedor da experiência numa sala de cinema. Mas é irónico que esta história de amor à qual não falta um romantismo obsessivo (outras das marcas de Petzold) nunca chegue a arrebatar, apesar de algumas sequências de antologia (como a que envolve um aquário) e da entrega do casal protagonista (embora Franz Rogowski esteja a escorregar para o typecasting depois das personagens também alienadas q.b. de "Entre Corredores" e "Happy End").
O esmero formal e a ambição temática nem sempre têm correspondência num argumento que não chega a mergulhar nas cicatrizes individuais e colectivas de uma forma tão desafiante como poderia. E que esmorece especialmente na recta final, mais próxima de uma maqueta (e há muitas nas cenas da vida profissional da protagonista) do que da consistência que alguns momentos prometiam.
Tendo em conta que o resultado exige uma suspensão da descrença ainda maior do que muitos dos títulos anteriores do seu autor, o deslumbre vem acompanhado de alguma frustração. Felizmente, há acessos de humor quando o tom ameaça tornar-se demasiado sisudo ou fatalista (como o recurso inusitado a um clássico dos Bee Gees), e mais uma vez ninguém pode acusar Petzold de falta de risco. Fica a curiosidade de ver o que fará a seguir, já que esta é a primeira obra de uma trilogia inspirada em fábulas germânicas. Para já, "UNDINE" dava uma bela sessão dupla com o esquecido "Ondine" (2009), de Neil Jordan, filme igualmente interessante mas menos opaco no encontro de mundos, épocas e ambientes aquáticos.
3/5