A versão de 1998 soa tão bem ou melhor em 2018
Pico criativo e comercial dos GARBAGE, "Version 2.0" celebra 20 anos em 2018 e a festa teve lugar nas dezenas de concertos da digressão europeia, centrada no segundo álbum da banda, reeditado este Verão. A passagem por Utrecht, na Holanda, confirmou (mais uma vez) a excelência do alinhamento e o carisma de Shirley Manson.
Os fãs dificilmente poderiam pedir mais. Todas as canções de "Version 2.0" e praticamente todos os lados B dos singles desse disco revisitados no mesmo concerto. E em alguns casos, com canções em estreia absoluta em palco nesta digressão - a 20 Years Paranoid, quase exclusivamente dedicada a um dos grandes álbuns de 1998.
Não é uma forma de celebração nova. O grupo de Shirley Manson já a tinha implementado no 20º aniversário do disco de estreia homónimo, em 2015, e o bom acolhimento motivou uma nova digressão, tanto na Europa como nos EUA, dedicada ao registo que apresentou ao mundo portentos como "Push It" ou "I Think I'm Paranoid".
Mas se singles como esses ajudaram a reforçar o lugar dos GARBAGE no mapa musical de finais dos anos 90, os outros temas de "Version 2.0" não merecem menos atenção e todos mostraram ter resistido bem ao tempo. Ponto de encontro entre guitarras e electrónica, com produção mais polida do que o disco antecessor, o álbum reforçou as influências de algum rock industrial, do trip-hop e da música de dança numa fusão mais directa e imediata, embora com camadas a redescobrir em audições sucessivas.
Ao vivo, duas décadas depois, o resultado mantém-se enérgico e empolgante, em alguns casos a beneficiar do update de alguns arranjos que não se desviam da matriz original. Na altura do lançamento do disco, os GARBAGE apresentavam a sua música como pop sci-fi e a atmosfera do concerto de Utrecht - no TivoliVredenburg, a 23 de Setembro - ajudou a dar-lhes razão.
Nem foi preciso ter grandes adereços em palco para traduzir um ambiente futurista, com um trabalho de iluminação meticuloso a sugerir cenários espaciais ou oníricos. As muitas citações cinéfilas ouvidas entre as canções também tiveram um papel nesse efeito: de "2001: Odisseia no Espaço" a "O Despertar da Mente", passando por "Blade Runner" ou "O Corvo", essas alusões mostraram que a paixão da banda pelo sampling não se esgota nos discos.
Ao contrário dessas obras de culto, "Version 2.0" foi um blockbuster inequívoco. Mas apesar da produção irrepreensível, o seu maior efeito especial é bem capaz de ter sido Shirley Manson. Ao vivo, essa suposição ganha ainda mais força: a escocesa mostrou-se tão desenvolta no charme sufocante de "Hammering In My Head" ou "Sleep Together" como na explosão garrida de "Dumb" ou "When I Grow Up", defendendo as cores do disco com pinturas, choker e collants laranja.
Mas a sua voz brilhou mais alto quando a instrumentação musculada lhe deu algumas tréguas. Foi o caso de "Medication" e "The Trick Is To Keep Breathing", baladas de recorte superior defendidas com convicção e entrega emocional. No mesmo comprimento de onda, "Thirteen", a (belíssima) versão do clássico dos Big Star, também ajudou a confirmar a versatilidade vocal de uma cantora que parece dar-se tão bem num palco rock como num cabaret. Essa impressão seria consolidada por uma "The World Is Not Enough" aveludada e insinuante, quase em atmosfera bas-fond, ou pelo dramatismo de um lado B como "Soldier Through This", relato amoroso de costela feminista .
Manson não se destacou só pela voz: a atitude revelou-se igualmente determinante. A vocalista foi o óbvio centro das atenções do concerto, ainda que não tenha deixado de ceder algum tempo de antena aos músicos. Logo ao início, provocou Steve Marker, que teve direito a ovação especial. Em "Can't Seem to Make You Mine", versão dos The Seeds, juntou-se a Duke Erikson nos teclados, num episódio particularmente eufórico. Mais discreto, Butch Vig manteve-se sempre atrás da bateria e esperou até ao final do concerto para se aproximar do público, ao qual atirou as baquetas entre muitos aplausos.
Embora a noite tenha sido uma das várias a celebrar os 20 anos de "Version 2.0", Manson acabou por convidar o público a cantar os parabéns a um dos elementos da equipa. "Vamos aproveitar que somos muitos para tornar isto ainda mais especial", incitou. E também aproveitou para cumprimentar um fã que estava a ver os GARBAGE ao vivo pela 60ª vez. "Foste a mais concertos nossos do que aqueles em que me lembro de ter participado, Greg", confessou.
Houve mais agradecimentos ao longo do concerto. No final, a vocalista dedicou "Cherry Lips" ao público LGBTQ, "que nunca desistiu de nós mesmo nas alturas em que poucos nos davam atenção", e destacou a resiliência dos "incríveis freaks e geeks" que são parte considerável dos fãs do grupo desde o início. A canção foi das poucas do alinhamento que não fizeram parte das sessões de gravação de "Version 2.0" - contou-se entre os singles do álbum sucessor, o mal amado "beautifulgarbage", de 2001.
A outra excepção, "No Horses", é o tema mais recente dos GARBAGE e um dos mais declaradamente políticos. "Embora esta noite estejamos a celebrar um momento importante do nosso passado, preferimos olhar para o futuro", assinalou. "Tivemos muitos pedidos de outras canções mais antigas, mas preferimos oferecer-vos uma nova", acrescentou, afirmando-se ainda contra a actual obsessão generalizada pelo dinheiro - tendência que inspirou uma canção pouco optimista e com um imaginário distópico, a lembrar os dias mais assombrados de uns The Cure.
Se estes temas foram surpresas num alinhamento centrado no álbum de 1998, nos outros momentos a actuação não se rendeu à lógica do baralhar e voltar a dar. A meio de "Wicked Ways", intrometeu-se "Personal Jesus", dos Depeche Mode, numa fusão que fez todo o sentido e com Manson muito à vontade enquanto proto Dave Gahan. "You Look So Fine" reservou outra homenagem, talvez até mais inesperada: "Dreams", dos Fleetwood Mac, que surgiu entre o final instrumental da canção, em modo nebuloso e com uma muralha sónica próxima do shoegaze. Já "Tired of Waiting for You", dos Kinks, colou-se a "13x Forever", um dos melhores lados B dos GARBAGE - e que se manteve fresquíssimo e borbulhante ao vivo.
Foi com outros lados B, aliás, que o concerto arrancou. "Afterglow" e "Deadwood", dois dos mais sombrios, motivaram um arranque cinemático q.b. antes do frenesim de "Temptation Waits", o (irresistível) tema de abertura de "Version 2.0". "I am a bonfire, I am a vampire, I'm waiting for my moment", cantou Shirley Manson. E se teve, como poucos, o seu grande momento em 1998, vinte anos depois continua a ser uma figura capaz de espevitar qualquer plateia ao longo de duas horas. Grande vocalista, grande concerto, excelente revisitação de um excelente disco.
5/5