Aonde é que pára a polícia?
Partindo de variações do policial e com marcas fortes de contextos sociais específicos, "O LAGO DOS GANSOS SELVAGENS" e "OS MISERÁVEIS" são dos dos filmes mais vibrantes e inconformados em cartaz. E duas excepções à sensação de mais do mesmo deixada pela oferta de muitas salas.
"O LAGO DOS GANSOS SELVAGENS", de Diao Yi'nan: O líder de um gang de motards que matou acidentalmente um polícia torna-se no inimigo público número 1 em Wuhan e arredores (sim, antes da epidemia do coronavírus), tendo como única aliada uma prostituta que deverá ajudá-lo a que a recompensa pela sua captura seja entregue à sua mulher e filho.
A partir desta premissa, o novo filme do autor de "Carvão Negro, Gelo Fino" (2014) confirma que o cineasta chinês está perfeitamente à vontade nos ambientes do policial de contornos noir, apurando a vertente formal já de si impressionante desse antecessor elogiado (e vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim).
Se o argumento não faz muito mais do que revisitar (e às vezes desconstruir) alguns códigos do género, adaptando-os ao submundo da realidade local, Yi'nan vai deixando uma série de sequências de antologia, e com um esplendor visual invulgar, seja de perseguições nocturnas de mota a combates corpo a corpo, das luzes de isqueiros às dos muitos néons (grande parte da acção decorre à noite, e o realizador filma-a como poucos nos últimos tempos).
Essa entrega ao lado estético nem sempre tem correspondência no desenvolvimento das personagens, mas o estilo não esmaga a substância: do retrato quase escarninho da polícia e do seu modus operandi (embora sem cair na denúncia e com margem para alguma redenção) à vertente feminista desenhada com subtileza (indissociável do arco narrativo da protagonista), o resultado está longe de ser inócuo e é mais humanista do que parece à partida, mesmo que seja mais marcante para a retina do que para o coração.
3/5
"OS MISERÁVEIS", de Ladj Ly: A nomeação ao Óscar de Melhor Filme Internacional e distinções em Cannes ou nos César, já para não falar do grande sucesso de público em casa, tornam este no maior filme-sensação a sair de França em muito tempo. E o aplauso é merecido, sobretudo tendo em conta que se trata de uma estreia na realização nas longas-metragens.
Mas pode dizer-se que o seu autor levou uma vida a chegar aqui, depois de ter começado pelas curtas e documentários filmados no mesmo bairro onde decorre a acção - Montfermeil, nos subúrbios de Paris -, que foi também aquele onde cresceu (e onde Victor Hugo escreveu o clássico que dá título ao filme, como uma personagem até refere a certa altura). Por isso, não admira que Ladj Ly, francês de ascendência maliana, pareça saber tão bem do que fala ao dar a sua visão do dia-a-dia nas ruas e casas da sua comunidade. Ou mais precisamente de dois dias, os primeiros de um agente da Brigada Anti-Crime com a sua nova equipa, olhar através do qual o realizador vai guiando os espectadores e os apresenta a tensões culturais e sociais num meio marginalizado (e composto sobretudo por imigrantes).
"Os Miseráveis" tem sido encarado como descendente espiritual de "O Ódio" (1995), mas é bem mais interessante e muito menos simplista e demagógico do que esse retrato de Mathieu Kassovitz. Embora não poupe críticas a alguns comportamentos das forças policiais, é igualmente lúcido e justo ao problematizar o ciclo vicioso de delinquência que se perpetua sem respostas fáceis no horizonte - e que ameaça levar tudo e todos pelo caminho, independentemente de origens ou facções.
A ponte entre o realismo social e o thriller é segura e Ladj Ly tanto recorre à câmara à mão como a imagens de drones (que noutros casos poderiam parecer ostensivas mas aqui têm uma justificação narrativa), embora a teia intrincada de personagens ou o final (um tremendo cliffhanger) sugiram que esta história talvez merecesse outro fôlego, como o que o pequeno ecrã permite. Até porque "Os Miseráveis" faz por um certo contexto francês o que séries como "Gomorra" ou "Top Boy" têm feito por microcosmos suburbanos italianos e britânicos, respectivamente, onde quem lá vive parece ter sido deixado à sua própria sorte.
3,5/5