As mil e uma noites
"MUITO AMADAS" já seria meritório só pela coragem do realizador e das actrizes, mas há mais do que boas intenções neste retrato da prostituição em Marraquexe pela lente de Nabil Ayouch.
Quando meio mundo adere de antemão ao esforço de Alejandro González Iñárritu e Leonardo DiCaprio, com o actor quase elevado a mártir pelas condições de rodagem atribuladas de "The Revenant: O Renascido", é pena que um filme como "MUITO AMADAS", só possível graças a um risco que nunca se confunde com um capricho burguês, tenha uma passagem tão discreta pelas salas.
É certo que a nova obra do franco-marroquino Nabil Ayouch chegou a dar que falar em alguns círculos - sobretudo na altura da Quinzena dos Realizadores em Cannes, no ano passado -, o que ainda assim não será muito quando parte da rodagem teve de ser feita num ambiente de secretismo, a estreia foi proibida em Marrocos e tanto o realizador como as actrizes sofreram ameaças de morte - a actriz protagonista, Loubna Abidar, chegou a ser agredida por vários homens num supermercado local e decidiu emigrar para França.
O motivo? Uma história sobre três prostitutas (ou quatro, já na recta final do filme) que não cede em apontar o dedo às humilhações de que estas mulheres são alvo nem à forma como são encaradas - não só elas, mas a própria figura feminina numa sociedade tendencialmente conservadora e machista. Estamos em terreno de cinema militante, que nem tenta disfarçar o apelo, o que não quer dizer que Ayouch, já engajado numa vertente social em obras anteriores, se contente com um panfleto: o tom, mais do que magoado ou rancoroso, é quase sempre dado por uma candura inesperada sem trair o olhar realista.
Entre as actividades nocturnas, movidas por um hedonismo a derrapar rapidamente para a decadência, e situações mais prosaicas de horários diurnos, centradas no companheirismo feminino (mas nem sempre assim tão pacífico), "MUITO AMADAS" mantém-se plausível no retrato das três amigas. As conversas do realizador com cerca de 200 prostitutas terão ajudado o filme a fintar os arquétipos mais tentadores, como o da prostituta com coração de ouro que a espaços parece dominar a protagonista - embora não por muito tempo, graças a uma caracterização nada unidimensional e ao desempenho versátil de Loubna Abidar, que vai de mãe coragem a dominatrix espirituosa sem deixar de lado alguma vulnerabilidade.
O foco na condição feminina em geral e na de prostituta em particular não impede, ainda assim, a entrada em cena de outros excluídos, sejam homossexuais (de travestis a reféns de um sistema heteronormativo) ou vítimas de pedofilia, aos quais Ayouch dá voz sem nunca tornar o cenário escabroso.
Em todo o caso, este é, acima de tudo, o relato de uma irmandade, e por aí chega a lembrar o também recente "Mustang", de Deniz Gamze, sobretudo nas cenas mais acolhedoras, no apartamento das protagonistas. E esse nem é o único parente próximo, com a mistura de drama contido e humor caloroso, alicerçado na cultura muçulmana, a remeter para os filmes da libanesa Nadine Labaki (em especial "Caramel") ou "O Verão de May", de Cherien Dabis, norte-americana de ascendência jordana e palestiniana. Tudo boas companhias (e eventuais portas de entrada) para um filme que não merece ficar sozinho.
3,5/5