Aviso: estes filmes não são neutros
"A indiferença mata", diz-se a certa altura em "COLECTIV - UM CASO DE CORRUPÇÃO". Mas esse também podia ser o mote de "O HOMEM QUE VENDEU A SUA PELE" e "QUO VADIS, AIDA?", outros filmes em cartaz nomeados ao Óscar de Melhor Filme Internacional este ano. E se não ganharam, não foi por falta de méritos cinematográficos...
"COLECTIV - UM CASO DE CORRUPÇÃO", de Alexander Nanau: Embora seja um documentário, esta nova sensação do cinema romeno está em linha com muita ficção conterrânea que tem sido aplaudida fora de portas nos últimos anos (pelo menos desde "A Morte do Senhor Lazarescu", de Cristi Puiu, estreado em 2005). Também aqui se coloca a nu o caos institucional e a falência de um sistema político, neste caso a partir de um incêndio durante um concerto de rock em Bucareste, em 2015, que resultou em tragédia não só na noite do evento, mas ainda nas semanas que se seguiram quando as mortes de dezenas de sobreviventes hospitalizados se revelaram consequência de uma terrível fraude na saúde - e cujos contornos são daqueles em que a realidade ultrapassa a ficção mais extremada.
Alexander Nanau, realizador já habituado ao formato documental, acompanhou a investigação de um jornal desportivo que insistiu em jogar fora de casa e tentou apurar responsabilidades. E se isso leva a que, na primeira metade, este se perfile como um filme de denúncia puro e duro, o cenário torna-se mais ambíguo quando o ângulo se vira para um ministro da Saúde recém-chegado e bem-intencionado, mas incapaz de quebrar um círculo vicioso - por muito que pareça tentar. Entre o idealismo e a angústia, fica um retrato urgente, esclarecedor e íntegro, mesmo que dispare demasiada informação em algumas sequências e pudesse parar mais vezes para respirar - como nos momentos em que segue uma das sobreviventes do incêndio que conseguiu reinventar-se, as cenas mais poéticas de um olhar obstinadamente seco e realista.
3,5/5
"O HOMEM QUE VENDEU A SUA PELE", de Kaouther Ben Hania: Segunda longa-metragem de uma realizadora tunisina que também passou pelas curtas e pelo documentário, esta combinação inusitada de drama e comédia é daqueles filmes que parecem estar sempre em vias de descarrilar, mas que lá acabam por nunca chegar a sair dos eixos. E ao consegui-lo, torna-se uma das estreias mais surpreendentes dos últimos meses, acompanhando a jornada de um refugiado sírio que aceita tatuar uma obra artística nas costas, através de um acordo com um veneradíssimo (embora polémico) autor de vanguarda, para poder circular livremente pela Europa.
"O HOMEM QUE VENDEU A SUA PELE" compensa em imaginação, atrevimento, sentido lúdico e energia visual o que perde em subtileza na forma como olha para os vícios do capitalismo, o desrespeito pelos direitos humanos ou o circuito da arte contemporânea, numa proposta que não anda longe da ironia de "O Quadrado", do sueco Ruben Östlund, nem do desespero do "Sinónimos", do israelita Nadav Lapid. Mas acaba por ser um filme mais estimulante do que esses ao também se sair muito bem na história de amor que motiva a fuga do protagonista.
Yahya Mahayni, intenso e magnético, e Dea Liane, com uma vulnerabilidade palpável, são grandes revelações num casal em que facilmente se acredita e que não é traído por um retrato que assume o tom de fábula humanista - embora ameace render-se ao niilismo e à misantropia a certa altura. E a dupla também não é ofuscada por Monica Bellucci, correcta num pequeno papel e com um regresso que se saúda. Se a sua presença ajudar a dar mais atenções ao filme, tanto melhor. Até porque Kaouther Ben Hania nunca se perde na alternância de registos, do thriller à sátira, enquanto revela uma voz própria numa co-produção tunisina, francesa, belga, alemã, sueca e turca inspirada na história verídica do artista belga Wim Delvoye (e adaptada com uma liberdade criativa considerável e contagiante).
4/5
"QUO VADIS, AIDA?", de Jasmila Zbanic: A realizadora de "Filha da Guerra" (2006) regressou aos conflitos dos Balcãs num drama que não quer deixar esquecer o massacre de Srebrenica, que em Julho de 1995 vitimou mais de 8300 bósnios muçulmanos. Aida Selmanagić, professora bósnia que trabalha como tradutora para a ONU, percebe que não é capaz de impedir o genocídio mas está decidida a salvar pelo menos a família, e assim atravessa um dia tortuoso durante o qual decorre grande parte da acção do filme.
Ao focar-se na experiência desta "mãe-coragem", Zbanic consegue dar a ver um dilema individual dentro de uma catástrofe colectiva e começa por acertar no casting: Jasna Djuricic é brilhante ao traduzir a determinação, o medo e a desenvoltura da protagonista, motor emocional e narrativo de um filme que provavelmente ganharia ainda mais força caso se demorasse em alguns secundários (sobretudo nos filhos de Aida). Em todo o caso, a aliança entre a cineasta bósnia e a actriz veterana torna este um retrato suficientemente singular e sentido, com um enorme respeito tanto pelas vítimas como pelo espectador ao escolher sugerir e não mostrar os horrores perpetrados pelo exército sérvio - liderado pelo general Ratko Mladic, sob o olhar "neutro" da ONU no local.
Da reconstituição da época ao afinco de todo o elenco, passando pelo nervo da câmara, Selmanagić dá provas de um efeito realista assinalável e equilibra a abordagem a um dos capítulos mais nefastos da história recente da Europa com um estudo de personagem que justifica a aposta na ficção. E depois do pesadelo da guerra, o epílogo, alicerçado na solidão e dignidade da protagonista, não é menos desconcertante...
3,5/5