Bom dia, tristeza
Ainda há esperança para o cinema quando um dos grandes filmes do ano (e provavelmente o melhor do primeiro semestre) é também um dos maiores êxitos de bilheteira - por cá ou nos EUA.
Não será por acaso: "DIVERTIDA-MENTE" revela-se uma proposta irrecusável para um público dos 7 aos 77 (pelo menos), capaz de funcionar a níveis diferentes junto de miúdos e graúdos.
Já seria legítimo esperar o melhor de Pete Docter, o autor de "Monstros e Companhia" e "Up - Altamente", que regressa à realização ao lado de Ronaldo Del Carmen (este a estrear-se nessa função numa longa-metragem depois de uma vasta experiência na animação no pequeno e grande ecrã). Ainda assim, e depois de alguns filmes menos memoráveis da Pixar, é bom reencontrá-lo numa obra que volta a elevar a fasquia dos estúdios e traz um concentrado de criatividade que não se tem visto muito em blockbusters - e até consegue conjugá-lo com temas e abordagens bem mais complexas do que muita produção norte-americana dirigida a adolescentes e adultos.
Viagem à cabeça de uma pré-adolescente de 11 anos, "DIVERTIDA-MENTE" centra-se nas cinco emoções que gerem o seu dia-a-dia: Medo, Repulsa, Raiva, Alegria e Tristeza. As duas últimas têm atenção especial quando um incidente as atira para os confins do cérebro, impondo um ambiente de estado de emergência numa altura decisiva para o destino de Riley, que muda de casa com os pais de uma localidade do Minnesota para São Francisco e demora a adaptar-se à nova rotina.
A partir daqui, a dupla de realizadores desenha uma jornada à qual não falta aventura e humor, num sortido de peripécias pelos meandros dos sonhos ou do subconsciente, suficientemente dinâmica para prender a atenção dos mais novos e com doses estimáveis de inteligência, sensibilidade e subtileza para também ter efeito em quem já tenha vivido a infância e a adolescência. Enquanto a missão de Alegria e Tristeza vai passando por várias etapas, o filme vai acrescentando camadas a um retrato melancólico do crescimento e do poder (e falhas) da memória.
O equilíbrio difícil, mas muito conseguido, de optimismo e angústia acaba por compensar o lado por vezes demasiado funcional do argumento, às vezes reduzido a uma sucessão de níveis e obstáculos. E se também é verdade que algumas personagens poderiam ter sido mais exploradas, o contraste entre as duas emoções dominantes e as cenas com Riley e os pais já têm uma força emocional incomum, com apelo universal sem se tornarem genéricas nem se munirem de facilitismos dramáticos.
A nível visual, "DIVERTIDA-MENTE" nem é das obras mais ambiciosas da Pixar, mesmo que o patamar de qualidade não seja beliscado. De qualquer forma, além de esta viagem ter um coração ainda maior do que a vastidão do cérebro, deixa umas quantas sequências de antologia, com destaque para uma especialmente abstracta, outra que se despede de uma personagem com tanto de cómico como de trágico ou uma delirante piscadela de olho a Hollywood.
Depois de "O Filme Lego" ou "Toy Story 3" terem captado tão bem o adeus à infância nos últimos anos, a nova proposta da Pixar volta a dar vontade de ir à cave, à arrecadação ou a um baú esquecido resgatar brinquedos e memórias. E não poderia haver melhor desfecho, por muito triste que seja voltar à alegria de outros tempos.
4/5