Cinema nada protocolar (cortesia da nova geração brasileira)
Depois do documentário "Deus tem AIDS", premiado no Queer Porto no ano passado, os realizadores brasileiros Fábio Leal e Gustavo Vinagre voltaram a estar em destaque na mais recente edição do QUEER LISBOA. Desta vez em separado, mas ambos com longas-metragens saudavelmente livres e transgressoras, cruzando humor e ansiedade pandémica.
"SEGUINDO TODOS OS PROTOCOLOS", de Fábio Leal: Variação muito singular sobre o "filme da pandemia", a primeira longa-metragem do realizador (e actor, argumentista e produtor) de curtas como "O Porteiro do Dia (2016) ou "Reforma" (2018) foi criada durante o confinamento e explora as inquietações de um homem gay solitário, carente e hipocondríaco, interpretado pelo próprio.
O protagonista decide ter sexo após dez meses de privação, mas está decidido a tomar todas as precauções contra a COVID-19, o que o atira para um processo tão angustiante como delirante nesta crónica de medos e afectos sempre pessoal mas transmissível. Filme literalmente muito lá de casa, é um olhar lúcido e lúdico sobre as contradições de uma fase de incerteza, aqui alimentada pelo refúgio no isolamento e numa dieta de redes sociais.
Capaz de conjugar humor autoconsciente (e em certa medida auto-crítico) e uma vulnerabilidade assinalável, Fábio Leal compensa com ideias visuais e de escrita os poucos recursos que tem à mão, mantendo um olhar tão clínico como sensual sobre um quotidiano atravessado por fases depressivas, pela tensão às vezes difusa entre a cumplicidade e o abuso ou por fantasmas da presidência de Bolsonaro.
Filmando o sexo entre homens com espontaneidade e fintando tanto o pudor como o choque, acompanha a tentativa de equilíbrio entre desejo e paranóia do protagonista enquanto recusa dar prioridade a corpos masculinos de beleza estereotipada. E no caminho do desespero ao gozo vai sugerindo ser um realizador para continuar a seguir: de uma conversa por webcam que não perde o fôlego ao longo dos cerca de dez minutos de duração, sempre com plano fixo, à entrada em cena da belíssima "Cuidado, Paixão", de Letrux, num dos momentos mais bonitos do filme, há aqui um claro olhar de cineasta.
3,5/5
"TRÊS TIGRES TRISTES", de Gustavo Vinagre: Vencedor do Teddy Award de Melhor-Longa Metragem do Festival de Berlim este ano, o novo filme do autor de "Vil, Má" (2020) e "Desaprender a Dormir" (2021) foi dos mais arriscados e refrescantes do QUEER LISBOA 26. Distopia divertidíssima ambientada numa São Paulo a lidar com uma pandemia de sinais particulares (e com efeitos na memória dos infectados), segue o caminho errático de três jovens pela cidade num registo episódico que não se contenta com um género.
A comédia, muitas vezes a tirar partido da irrisão camp, marca boa parte da viagem, mas há desvios para o musical ou acessos oníricos num filme invulgarmente solto e genuinamente queer. Entre piscadelas de olho à obra de John Waters, Pedro Almodóvar ou David Lynch, Vinagre conjuga o humor com uma ode aos marginalizados, sejam homo ou transexuais, trabalhadores do sexo, seropositivos ou idosos deixados ao abandono. E por isso este é um retrato que acaba por esbarrar na tragédia, no racismo, na homofobia ou no conservadorismo, embora opte por enfrentá-los com um sorriso tão insolente como a postura dos três protagonistas.
Se o elenco se mostra irregular e às tantas o argumento dispara em várias direcções, esta nunca deixa de ser uma experiência que mantém doses generosas de provocação, graça e carisma entre quadros visuais muito inspirados (o realizador tem bom olho tanto para exteriores como interiores, das avenidas paulistas a uma curiosíssima loja de velharias ou um cardume de antologia). Uma aparição fulminante de Inês Brasil e a escola "Ru Paul’s Drag Race" contribuem depois para algumas das cenas mais esgrouviadas e reforçam que "TRÊS TIGRES TRISTES" também é, à sua maneira, um filme sempre pop.
3,5/5