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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Com grandes poderes vêm grandes... esperanças?

E ao sétimo filme, o maior super-herói da Marvel voltou a ser espectacular. "HOMEM-ARANHA: NO UNIVERSO ARANHA" não só é a aventura cinematográfica da personagem mais revigorante desde a trilogia de Sam Raimi como está entre os (poucos) blockbusters de 2018 a não perder.

Into the Spider-Verse

Depois de seis filmes (e duas participações especiais em aventuras de Capitão América e dos Vingadores), que futuro há para o Homem-Aranha no grande ecrã? As três fitas que sucederam à trilogia de Sam Raimi não ofereciam a resposta mais entusiasmante, com variações de Peter Parker e do seu alter ego muito abaixo das primeiras adaptações, que ou repetiram ideias ou trouxeram alterações escusadas (a ponto de "Homem-Aranha: Regresso a Casa" ter oferecido uma galeria de secundários completamente descaracterizada e quase sem vestígios da BD).

Mas afinal a história do aracnídeo no cinema ainda pode estar só no princípio, e isso nem é necessariamente mau, pelo menos a julgar pelo por uma lufada de ar fresco como "HOMEM-ARANHA: NO UNIVERSO ARANHA". Se é verdade que nunca houve tantos filmes de super-heróis como hoje, e que a rotina é muitas vezes o maior denominador comum de grande parte deles, a nova aposta da Sony mostra que não tem de ser esse o caminho... e que ainda é possível trazer sangue novo a um género consideravelmente explorado.

Into the Spider-Verse 2

O filme de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman também prova que a animação pode ser uma opção válida para adaptações de super-heróis, e até mais frutífera do que versões de imagem real. Raras vezes o ritmo, energia e lógica visual da BD foram tão bem transplantados para o grande ecrã como aqui, com a narrativa a ter legendas e onomatopeias entre os alicerces ("Scott Pilgrim Contra o Mundo" também já o tinha feito, é certo) enquanto vai conjugando animação digital e desenho à mão, integrando ainda elementos do cartoon ou do anime à medida que algumas personagens vão entrando em cena.

Além do trio de realizadores, há mais uma presença determinante: Phil Lord, que compõe com Rothman a dupla responsável pelo frenético e inventivo "O Filme Lego" e pelos divertidos "Agentes Secundários"/"Agentes Universitários", que aqui se encarrega do argumento e produção. E a irreverência desses filmes mantém-se na versão mais metaficcional e pós-moderna do Homem-Aranha já vista no cinema, capaz de propor um novo começo sem esquecer o que está para trás, homenageando a herança da personagem enquanto apresenta visões inéditas (com o caldeirão a incluir tanto um olhar sobre as minorias como influências do film noir ou da ficção científica).

Apesar do delírio visual, o maior corte com o passado talvez seja o facto de, desta vez, o Homem-Aranha não ser exclusivamente associado a Peter Parker. Já era assim na BD há anos, mas tendo em conta os filmes mais recentes, a mudança também é bem-vinda no cinema, até porque o original tem sucessor à altura em Miles Morales. Adolescente negro latino-americano, o novo protagonista é uma resposta certeira a uma nova geração de fãs e "HOMEM-ARANHA: NO UNIVERSO ARANHA" traduz muito bem o seu mundo.

Into the Spider-Verse 3

Nova Iorque mantém-se como cenário, mas a acção percorre agora as ruas de Brooklyn em vez das de Queens, a arte urbana e o hip-hop influenciam directamente a desenvoltura narrativa, "Grandes Esperanças" (de Charles Dickens) é o livro de cabeceira e a esfera familiar e comunitária de Morales é desenhada com mais textura e personalidade do que muitos filmes de super-heróis de carne e osso (ou do que muitos filmes, com ou sem super-heróis).

Tal como na história de Peter Parker, não falta a obrigatória picada de uma aranha nem sequer uma tragédia a moldar a origem, traços que ajudam a reforçar a mitologia enquanto o protagonista vai encontrando a sua voz. Essa procura dá, aliás, o mote a esta aventura inicial e não é difícil que o espectador se torne cúmplice: por muito que os superpoderes contem, esta jornada volta a comprovar que o lado humano é o que eleva o Homem-Aranha face a muitos vigilantes, independentemente de que está atrás da máscara. E além de Morales há aqui muitas figuras que a usam, num fortíssimo núcleo de secundários que abre a porta para a expansão deste universo. Mas ao contrário de outros filmes do género, "HOMEM-ARANHA: NO UNIVERSO ARANHA" não só é uma aventura auto-contida como nunca perde o rumo da viagem pessoal do seu protagonista. Se esse respeito até torna o final talvez demasiado conveniente, essa será uma limitação mais do que desculpável face à solidez e criatividade geral.

Into the Spider-Verse 4

Um dos maiores méritos dos realizadores e dos argumentistas é, de resto, colocarem várias peças em jogo ao longo de duas horas sem que esta aventura resulte numa manta de retalhos. Embora Peter Parker já não seja o protagonista, há tempo e espaço para versões nunca vistas no cinema, que rompem com o mimetismo de alguns filmes anteriores, numa história que é tanto um relato coming of age como do envelhecimento, experiência iniciática e passagem de testemunho. E até a profusão de vilões, noutros casos atabalhoada, não invalida que cada um tenha oportunidade de provar o que vale, sobretudo um Rei do Crime tão colossal como vulnerável, a nova versão de Dr. Octopus e um Gatuno enigmático e arrepiante.

O recurso ao humor, constante ao longo de quase todo o filme, não choca com a força de alguns episódios mais dramáticos, essenciais para o peso emocional (conferir no plano de antologia com pai e filho perto da entrada de um apartamento). Além do tom bem doseado, o argumento dá uma lição de economia narrativa a muita concorrência ao conseguir evitar uma overdose de diálogos explicativos, que certamente estariam presentes caso a aposta fosse entregue a mãos menos habilidosas. Mas nem as referências ao passado nem a introdução de várias personagens (e respectivas histórias pessoais) levam a que "HOMEM-ARANHA: NO UNIVERSO ARANHA" acumule palha narrativa.

Talvez até seja um filme demasiado despachado a espaços, como no desenvolvimento da dinâmica entre o protagonista e os seus aliados, mas pelo menos nunca se arrasta. Pelo contrário, é dos mais frenéticos do ano e não se perde entre a aceleração (mesmo que ameace no obrigatório conflito do terceiro acto, ainda assim mais imaginativo do que a média), experiência lúdica sem deixar de ser experimental dentro do seu campeonato - mas a deixar, finalmente, a esperança de um mundo melhor para o universo dos super-heróis no cinema...

4/5