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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Da Rússia com fulgor (e algum mau feitio)

Apesar de ser realizado por Ralph Fiennes e de contar com Liam Neeson entre os produtores executivos, "O CORVO BRANCO" tem tido um percurso relativamente discreto. Mas este olhar sobre o bailarino Rudolf Nureyev é mais interessante do que alguns biopics que levam a corridas às bilheteiras.

 

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Depois de "Coriolano" (2011) e "The Invisible Woman" (2013), a terceira aventura de Ralph Fiennes atrás das câmaras arrisca um retrato de um dos ícones da dança do século passado. E se o resultado é bastante mais modesto do que a pedrada no charco que foi Rudolf Nureyev, não desmerece ao acompanhar os primeiros anos do bailarino russo até à entrada na idade adulta, partindo do livro "Rudolp Nureyev: The Life", de Julie Kavanagh, aqui adaptado por David Hare ("As Horas", "O Leitor").

 

A primeira visita do protagonista a Paris, nos anos 60, marca o centro de uma narrativa que vai recuando até à infância e adolescência, na sua terra natal. Essa opção, se por um lado contraria o formato linear de muitos biopics, nem sempre é a mais eficaz para ajudar a situar o espectador na cronologia de Nureyev, com os saltos temporais a quebrarem algum impacto dramático na primeira metade do filme. Também não ajuda que as sequências centradas no bailarino ainda criança, numa pequena localidade, estejam entre as mais estereotipadas, com os filtros sombrios da fotografia a reforçarem um isolamento e solidão que Fiennes ilustra com mão pesada.

 

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Nas outras fases da vida do protagonista, contudo, "O CORVO BRANCO" mostra-se substancialmente mais desenvolto, embora boa parte do mérito seja de Oleg Ivenko. Na sua primeira experiência como actor, o bailarino profissional ucraniano revela-se uma escolha de casting certeira, não só pelas parecenças físicas (surpreendentes) com Nureyev mas sobretudo pela espontaneidade e garra com que se entrega ao papel.

 

Tão insolente como obstinado, e movido por uma capacidade de deslumbramento que o filme sabe explorar ao recordar outros "grandes" das artes em paralelo, o protagonista não facilita a empatia do espectador, embora isso seja mais feitio do que defeito - o lado temperamental da estrela russa ficou bem documentado em várias ocasiões, e é bom ver que o filme não a ignora.

 

Ivenko surge bem acompanhado num elenco coeso, com destaque para o próprio Fiennes, que na pele do contido professor de dança de Nureyev opta por se expressar em russo, um dos detalhes que asseguram a verosimilhança da maioria das cenas (além de uma lição que produções como a série "Chernobyl" poderiam ter em conta, em vez de optarem pelo inglês). Adèle Exarchopoulos também convence enquanto cúmplice do protagonista em Paris, ainda que outras personagens secundárias pudessem ter sido mais exploradas, sobretudo os rapazes com quem Nureyev se vai relacionando (seja platonicamente, como o colega de quarto e um bailarino francês, ou um rapaz alemão com o qual se envolve de forma mais íntima).

 

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Embora desequilibrado, "O CORVO BRANCO" ganha outro fôlego na recta final, ao abandonar o recurso a flashbacks sucessivos para se concentrar num único acontecimento: o da tentativa de detenção de Nureyev pelo KGB em Paris, que pretendia levá-lo para Moscovo e impedi-lo de prosseguir para Londres juntamente com a sua companhia de dança.

 

De repente, Fiennes salta do drama iniciático para o thriller de contornos políticos e assina as sequências mais empolgantes do filme, mantendo-se fiel ao mergulho no individualismo e ao grito de liberdade (pessoal e artística) que percorre os momentos anteriores, também assentes nos contrastes da Guerra Fria e na repressão soviética. E consegue fazê-lo com um acumular de tensão que não desemboca no retrato hagiográfico, deixando bem evidentes as nuances da personalidade de Nureyev, que acabariam por ser determinantes para que o seu génio performativo (vincado pela diluição entre o masculino e o feminino) pudesse ter, finalmente, um palco global. 

 

3/5