Dois amores, uma trivialidade e uma raridade
Há muito a descobrir no QUEER LISBOA 20 e pouco tempo para ir dando conta de tudo. Do balanço (positivo) dos últimos dias, ficam aqui as impressões de quatro filmes do festival que está até 24 de Setembro no Cinema São Jorge e na Cinemateca. De França ao Chile, da comédia ao drama, da curta à longa-metragem:
"THÉO ET HUGO DANS LE MÊME BATEAU", de Jacques Martineau e Olivier Ducastel: Começa com uma longa cena de sexo gay, em grupo, que vai rapidamente do erotismo a cenas explícitas q.b., mas se esse arranque é dos mais crus que se têm visto (e mais bem filmados, já agora), este drama ambientado numa madrugada em Paris tem pouco de gratuito e escabroso. Pelo contrário, depois do primeiro impacto, o filme do duo de realizadores franceses salta para a fantasia romântica sem que se perca pelo caminho, sabendo como desenhar o nascer de uma intimidade que vai muito para além dos corpos, a partir do encontro da jovem dupla protagonista entre dezenas de estranhos, continuando a envolver com a jornada nocturna por ruas pouco óbvias da cidade do amor. "Antes do Amanhecer", de Richard Linklater, será uma aproximação quase imediata, pelo construir de uma relação apresentado quase em tempo real, e um episódio especialmente acarinhado da série "Looking" (centrado em Patrick e Richie) também vem à memória. Mas não faltam aqui singularidades, seja pela sombra do HIV que marca toda a acção - com direito a cenas algo didácticas sobre a profilaxia pós-exposição, é verdade - ou pelos traços de realismo social das breves conversas dos dois rapazes com terceiros (vincadas pela temática da imigração ou desemprego). E depois há, claro, François Nambot e Geoffrey Couet, actores praticamente desconhecidos mas com uma química e entrega que fazem com que se acredite, sem grandes reservas, neste amor à primeira vista.
"ABSOLUTELY FABULOUS: THE MOVIE", de Mandie Fletcher: As protagonistas, agora já na casa dos sessenta, podem continuar fabulosas, mas o filme não o é tanto. A adaptação da muito popular britcom televisiva dos anos 90, há muito adiada, até consegue voltar a juntar o gang feminino que acompanhava Patsy e Edina no pequeno ecrã, e se para os fãs mais acérrimos será bom reencontrar as personagens, este salto para o cinema não tem grande motivo para existir além disso. Ou disso e de uma mão cheia de gargalhadas, distribuídas com algum ritmo nos primeiros dois terços mas a perder alguma eficácia mais para o final. A duração do filme, relativamente curta (hora e meia), acaba por ser demais para uma narrativa que não avança nem atrasa o status quo das personagens, colocando em jogo a tensão entre mãe e filha num modelo similar ao de demasiados episódios da série (com a diferença de Saffron ter menos para fazer aqui do que em alguns deles). Guardam-se alguns gags hilariantes (o do exercício físico de Edina ou os das reacções a notícias sobre Kate Moss são de antologia) e fica a tentativa de captar o ar do tempo (Uber e redes sociais incluídos), assim como a própria passagem do tempo com o envelhecimento a ser uma questão. Já a caracterização da comunidade LGBTI (do gay de serviço às pessoas trans) é só anacrónica, na linha de uma sitcom estereotipada dos anos 90. Uma sictom como... "Absolutamente Fabulosas". Afinal, para um filme ser cinema não basta ter projecção no grande ecrã...
"ALFA", de Javier Ferreiro: Um actor porno não é de ferro. Nem mesmo quando se chama Alfa, como o protagonista desta curta-metragem lacónica e lânguida, profissional veterano que não consegue recuperar da perda do companheiro com o qual se iniciou na indústria dos filmes para adultos. O espanhol Javier Ferreiro segue-o durante quase 20 minutos entre os bastidores das filmagens, sem glorificar nem desdenhar a actividade, num retrato ficcionado que desconstrói, em ambiente de fim de festa, o mito do macho latino. Longe do fulgor dos primeiros tempos, o cubano Alfa Méndez é um corpo escultural que se move cada vez mais como um fantasma, DILF idolatrado pelos colegas mais novos mas sem o motor amoroso para que o contacto físico mereça ser filmado. O estudo de personagem é mais ensaiado do que verdadeiramente consumado, mas isso será mais limitação do formato do que de um realizador e um actor que parecem estar em sintonia.
"RARA", de Pepa San Martín: A premissa desta longa-metragem de estreia abre logo portas para a militância, ao basear-se num caso verídico de um casal de mulheres que perdeu a custódia das filhas de uma delas para o pai. Mas em vez de um panfleto, este drama chileno traz o melhor do cinema sul-americano recente (do realismo árido ao aprumo do elenco) e olha para as suas personagens sem juízos de valor nem condescendências, sejam elas crianças ou adultos, hetero ou homossexuais. Guiado pelo olhar de Sara, a filha mais velha, o resultado vai da serenidade ao caos familiar, com uma conjugação de melancolia e humor a vincar também a entrada na adolescência da protagonista e a procura de um lugar avesso a rótulos fáceis e limitadores. Sem ser um caso de tremenda originalidade, o filme mostra uma segurança invulgar (ou rara, lá está) para uma primeira obra, sobretudo ao conseguir ser emotivo e comovente sem nunca escorregar para rodriguinhos de gosto duvidoso. Dificilmente se negará aqui o estatuto de promessa, como dificilmente se sai da sala sem um nó na garganta, imprescindível num bom relato sobre os dilemas do crescimento.