Duas separações para ver em streaming
Apesar de "O Irlandês", de Martin Scorsese, ter dominado boa parte das atenções, há mais estreias cinematográficas recentes a ter em conta na Netflix. "ATLANTIQUE" e "MARRIAGE STORY" são duas das que bem mereciam uma sala de cinema - e partem ambas de histórias de casais desencontrados, embora as semelhanças acabem aí.
"ATLANTIQUE", de Mati Diop: O vencedor do Grande Prémio do Júri em Cannes este ano chega a Portugal com uma estreia discreta em streaming, mas é uma bela surpresa a merecer atenção no meio do ruído nas salas ou nas plataformas online. Filme de várias camadas e géneros, arranca como drama de realismo social antes de se ir movendo para outros territórios, do thriller a domínios sobrenaturais, sem perder de vista uma história de amor adolescente assombrada pelas clivagens económicas e os riscos da imigração clandestina - no caso, de Dakar rumo a Espanha. A realizadora, francesa de ascendência senegalesa (e que participou como actriz em filmes de Antonio Campos ou Claire Denis), retoma o retrato da sua primeira curta-metragem, "Atlantiques" (2009), e a vertente documental desse trabalho inicial tem reflexo numa atmosfera que vai cedendo espaço ao místico. Embora revele algumas fragilidades, compreensíveis numa estreia nas longas (das hesitações de ritmo ao lirismo ingénuo de algumas narrações em off ou diálogos), Diop lança ideias mais do que suficientes para que a acompanhemos, partindo de cenários reconhecíveis para deixar um imaginário intrigante e bem consolidado no final. E pelo caminho, desenha uma das histórias de emancipação feminina mais imaginativas e sensíveis do ano.
3/5
"MARRIAGE STORY", de Noam Baumbach: Depois de uma série de títulos pouco memoráveis, o autor de "A Lula e a Baleia" (2005) dá finalmente razão a quem o apontava como um dos nomes do cinema independente norte-americano a não perder de vista quando esse filme-revelação estreou. E até o faz com outro drama familiar mais uma vez centrado num divórcio, ainda que agora o foco narrativo esteja sobretudo nos pais - por muito que o filho seja o motor de algumas das viragens mais agrestes. Mesmo nas suas obras menos conseguidas, Baumbach nunca tinha deixado de ser um director de actores criterioso e desta vez oferece papéis especialmente suculentos a Adam Driver e Scarlett Johansson, protagonistas de uma história desencantada de cumplicidade e rivalidade. A entrega da dupla é inegável, e faz muito por um retrato de uma crise já muito explorada (de Ingmar Bergman Woody Allen, influências assumidas), mas Laura Dern, Alan Alda e Ray Liotta também têm espaço para brilhar num "filme de actores" no qual o realizador não é presença indiferente (da gestão do espaço meticulosa em muitas cenas de interiores ao tom cómico ou dramático, reconfortante ou cortante). Sem cair num cinismo calculista nem num relato de comoção fácil, e dando aos dois elementos do casal a complexidade que merecem (não forçando a espectador a tomar partido) Baumbach consegue um dos seus filmes mais maduros (e aplaudidos), mesmo que neste departamento "Uma Separação", de Asghar Farhadi, ainda se mantenha como a obra de referência dos últimos anos.
3,5/5