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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Freud não explica (mas Nietzsche dá um empurrão)

O novo cinema romeno continua a merecer atenção e "ANA, MEU AMOR", de Cãlin Peter Netzer, tem sido um dos casos mais recentes de aplauso internacional - mesmo que a narrativa seja tão irregular como o estado da relação que acompanha. 

 

Ana Meu Amor

 

Cãlin Peter Netzer já se tinha imposto como nome a seguir entre a nova geração de cineastas romenos com "Mãe e Filho" (2013), a sua terceira longa-metragem e a que mais o ajudou a abrir portas até então - entre as distinções contaram-se o Urso de Ouro no Festival de Berlim e a candidatura a Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.

 

"ANA, MEU AMOR", a somar mais um prémio em Berlim (Urso de Prata para Melhor Contribuição Artística em 2017, pela montagem), mostra que o realizador continua interessado em seguir relações tóxicas q.b., com doses assinaláveis de manipulação, desviando agora o foco do âmbito maternal para o conjugal. Mas embora mude também o tom (um pouco menos árido e escarninho) e o formato narrativo (aqui não linear, com avanços e recuos temporais), o filme mantém os trunfos e limitações do antecessor ao se infiltrar no quotidiano de um jovem casal ao longo de vários anos.

 

Ana Meu Amor 3

 

Intacta está a atmosfera crua e realista, a cargo de um recurso talvez excessivo da câmara à mão que ainda assim faz justiça ao talento e entrega da dupla protagonista, os óptimos Diana Cavallioti e Mircea Postelnicu. É notável, aliás, como o trabalho de caracterização se conjuga com a espontaneidade dos actores para dar conta do envelhecimento das personagens - com direito a mudanças de cortes de cabelo que noutros casos pareceriam forçados mas aqui resultam credíveis e até determinantes para situar o espectador entre os saltos cronológicos.

 

A moldar a dinâmica da relação, os ataques de ansiedade da protagonista feminina, Ana, são um elemento-chave logo desde a primeira sequência do filme, que encontra o casal nos tempos da universidade numa discussão (e manobra de sedução) a dois sobre leituras de Nietzsche. A conversa, interrompida por um ataque de pânico, dá o mote para uma história de amor vincada pela devoção e depressão, que Netzer desenvolve com regressos a questões filosóficas, mas também religiosas. A psicanálise surgirá também por aqui, sendo especialmente marcante para as cenas recorrentes das sessões de terapia do protagonista masculino, Toma, embora o realizador não reduza este drama a meras relações deterministas de causa-efeito.

 

Ana Meu Amor 2

 

A lembrar a espaços as relações atormentadas de "Meu Rei", de Maïwenn, ou "Blue Valentine - Só Tu e Eu", de Derek Cianfrance, tanto pela narrativa fragmentada como pelo embate contínuo entre solidão e codependência, "ANA, MEU AMOR" pode não trazer novidades de maior mas ainda é uma variação conseguida de um caso "amour fou" devidamente personalizado, até pela intromissão de sinais da realidade romena no percurso do casal - em particular pelos contrastes culturais, sociais e políticos dos dois jovens amantes, tornados mais evidentes nas cenas com as famílias tanto dele como dela.

 

As mais de duas horas de duração, no entanto, levam a que uma mão cheia de cenas fortes surja entre outras tantas menos vitais, a acusar alguma redundância narrativa. E o empenho dos actores (que não se esquivam a dar corpo a dois ou três episódios despudorados) nem sempre chega para que o filme desperte o mesmo nível de interesse, sobretudo quando as muitas elipses acabam por deixar de fora alguns pormenores do desenvolvimento da personagem de Ana - mesmo que essa limitação até possa ser intencional, uma vez que é sobretudo o olhar de Toma a conduzir o espectador. De qualquer forma, tal como em "Mãe e Filho", há por aqui intensidade e inteligência suficiente para que Cãlin Peter Netzer seja um nome a reter e "ANA, MEU AMOR" um filme a espreitar entre tantas estreias dispensáveis.

 

 3/5