Fundo de catálogo (111): PJ Harvey
Muitas vezes esquecido numa discografia à qual não faltam pontos altos, "IS THIS DESIRE?" foi dos passos mais aventureiros de PJ HARVEY - e dos seus álbuns com um parto mais conturbado. 20 anos depois, continua a ser um retrato sublime (e às vezes difícil) de experiências femininas à beira do abismo.
Depois de três álbuns que a tornaram, para muitos, na primeira dama do rock e do blues dos anos 90, Polly Jean Harvey terminou a década num registo inesperadamente implosivo, a milhas dos riffs viscerais de "Dry" (1992) e "Rid of Me" (1993) e da teatralidade de "To Bring You My Love" (1995), este último a impor um patamar especialmente elevado no percurso da britânica - é, ainda hoje, um dos seus discos mais consensuais.
"IS THIS DESIRE?", no final de 1998, fez figura de "difícil" quarto álbum, consideravelmente menos acessível do que qualquer um dos anteriores e até com recantos impenetráveis aos primeiros contactos. Mas também caso evidente de um disco que pede tempo e recompensa audições repetidas, convidando ao mergulho nos retratos de várias mulheres (muitas a darem título às canções), todas com experiências no limite do desejo, do abandono ou da tragédia.
Sucessão de contos dominados por um pessimismo que chega a ser críptico (confirmar na secura distorcida de "My Beautiful Leah") e sorumbático (no cântico moroso da esquelética "Electric Light"), o alinhamento dá prioridade a uma PJ HARVEY em modo sussurrante mas não reprime por completo o grito de outros tempos ("The Sky Lit Up" ou "No Girl So Sweet", fulminantes, ajudam a dar outra vertigem à jornada) nem as oscilações recorrentes entre um registo grave e agudo (a testar, talvez como nunca antes, as potencialidades da sua voz, num processo de assimilação pouco imediata).
A faixa-título, a última do alinhamento, traz finalmente alguma luz a um disco nebuloso e atmosférico, nascido de um período criativo que a britânica coloca entre os mais obsessivos da sua obra, vivido numa fase de recolhimento entre Londres e Dorset, a sua cidade-natal. Mas também como o mais arrojado e gratificante até à data, com uma sonoridade exploratória que teve os já habituais John Parish, Mick Harvey e Rob Ellis entre os cúmplices.
Flood, na produção, terá sido responsável pela presença rude e até fantasmagórica do baixo em várias ocasiões. Marius De Vries também ajudou a consolidar o efeito sensorial de um álbum no qual o piano e a electrónica roubam protagonismo às guitarras, com contaminações de ambientes industriais ou do trip-hop mas sem se fixarem num território específico (o borrão sonoro de "Joy" fica como um dos exemplos mais claros e cinéticos).
Entre os episódios particularmente memoráveis destas colaborações contam-se uma "The Garden" enigmática e inquietante - numa rara ocasião em que o relato feminino cede espaço ao masculino -, lado a lado com o romantismo de "Angelene", no belíssimo arranque pintado a blues, e sobretudo de "The River", que em alguns dias parece subir ao pódio das melhores canções de sempre de PJ HARVEY - mérito de uma das suas interpretações mais comoventes e de uma moldura sonora que aperfeiçoa a grandiosidade de "To Bring You My Love". Não é feito de que muitos álbuns possam orgulhar-se, convenhamos, e está entre os óptimos pretextos para (re)descobrir um dos discos mais singulares de finais dos anos 90...