Haverá sangue
Mais discreta do que outras produções da Netflix, "BLOODLINE" não conta com o hype de "House of Cards" ou "Narcos" mas é uma das melhores apostas do serviço de streaming. E uma das grandes séries do momento, com a segunda temporada a manter o nível da primeira.
"Não somos más pessoas, mas fizemos uma coisa má". É assim que John Rayburn, narrador da primeira temporada de "BLOODLINE", apresenta a família que protagoniza o drama da Netflix ambientado na Flórida, cujo ambiente soalheiro contrasta com o tom cada vez mais negro desta história centrada em quatro irmãos. O clã Rayburn, um dos mais respeitados da região turística na qual gere um hotel há décadas, esconde uma dose considerável de segredos e mentiras por detrás da imagem idónea que projecta, mas esse estatuto ameaça cair em degraça quando Danny, o filho mais velho, regressa a casa e não pretende voltar a deixá-la tão cedo.
A partir daqui, Todd A. Kessler, Glenn Kessler e Daniel Zelman, que já tinham criado "Damages", do FX, em conjunto, lançam as bases de uma trama que sabe, como poucas, inflitrar-se na rede de cumplicidades, disputas, partilha e ressentimentos das relações familiares, mérito de um argumento tão bem carpinteirado que até se dá ao luxo de avançar com um elemento-chave do desenlace da narrativa da primeira temporada logo no episódio piloto. E se esse capítulo inicial nem será o cartão de visita mais aliciante, pedindo tempo para a apresentação do ambiente e das personagens, "BLOODLINE" acaba por se ir destacando como autêntico "slow burner", insinuando-se de mansinho até se impor com uma intensidade rara.
O magnetismo desta mistura de thriller lânguido e saga familiar mais contida do que operática deve-se, sobretudo, à forma hábil como os criadores doseiam figuras e acontecimentos, com flashbacks recorrentes que nunca atrapalham o ritmo e acentuam a carga dramática. Claro que este modelo narrativo centrado num acidente trágico, mostrando o antes na primeira temporada e o depois na segunda, seria inútil caso os peões do jogo se esgotassem nisso mesmo, em marionetas para fazer o argumento avançar - como acontece ocasionalmente em "House of Cards" e quase sempre em "Narcos" ou "Jessica Jones", para ficarmos por outras séries da Netflix.
Mas se o mistério envolve, é porque tem gente a sério lá pelo meio, para o melhor e para o pior, com as contradições evidentes na tagline da produção. "BLOODLINE" não pede que gostemos destes irmãos, dos pais e dos que os rodeiam, mas permite-nos compreendê-los enquanto os segue num acumular de tensão que estica e às vezes quebra redes de confiança. E aí o elenco é determinante, com óbvia vantagem para Ben Mendelsohn, irrepreensível como o esquivo e renegado Danny, de longe a figura mais carismática da primeira temporada.
Uma das principais dúvidas ao entrar na segunda época era, de resto, se a série conseguiria manter a bitola quando o irmão mais velho dos Rayburn ficaria obrigatoriamente sem tanto tempo de antena. Mas nem é preciso avançar muito nos episódios mais recentes, estreados este ano, para perceber que os outros actores dão conta do recado, até porque as suas personagens ganham espaço para crescer - é o caso dos outros três irmãos, encarnados por Kyle Chandler, Norbert Leo Butz e Linda Cardellini, ou de grandes secundários como Chloë Sevigny, John Leguizamo e os menos sonantes mas surpreendentes Enrique Murciano e Owen Teague (este último a complementar um dos melhores castings pai/filho em muito tempo).
Também é bom encontrar por aqui veteranos como Sissy Spacek e Sam Shepard, na pele dos patriarcas, tão pouco vistos no grande ecrã e a comprovarem que é no pequeno que estão alguns dos desempenhos mais fortes dos últimos anos. E quando interpretações destas têm uma narrativa à altura, vincada por várias zonas de sombra, sem os maniqueísmos e simplismos de tantos outros policiais (às vezes lembrando o noir sulista de alguns filmes de John Sayles) e dando às personagens a respiração que estas merecem, torna-se difícil não apontar "BLOODLINE" como um drama de recorte superior.