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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Histórias negras importam. E nesta vale quase tudo

"LOVECRAFT COUNTRY" é a nova série-sensação da HBO e mais uma a colocar o dedo na ferida do racismo sistémico nos EUA, depois de "Watchmen". Mas a julgar pelo primeiro episódio, esta viagem promete ser ainda mais imprevisível e avessa a regras.

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"As histórias são como as pessoas. Não são perfeitas, mas podemos amá-las apesar das falhas", diz o protagonista de "LOVECRAFT COUNTRY" num dos diálogos iniciais da nova série disponível na HBO Portugal. E embora se refira a aspectos moralmente questionáveis das aventuras de John Carter, das quais é fã acérrimo, parece reagir à histeria que tomou conta da reavalição - e dos apelos à censura - de um número crescente de obras artísticas em 2020, com destaque para "E Tudo o Vento Levou" - um dos casos mais mediáticos, na sequência de acusações de racismo.

As falhas continuam lá, responde a interlocutora de Atticus "Tic" Freeman, o herói desta saga que não esquece as que lhe abriram caminho. Mas se não podemos mudar o passado, podemos aprender com ele sem entrar numa cruzada em nome da "cancel culture". E apostar em novas narrativas, algumas delas curiosamente impulsionadas pela mesma HBO que esteve no centro da polémica em torno do clássico de Victor Fleming.

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Depois de "Watchmen" ter surpreendido no ano passado, ao adaptar para televisão uma novela gráfica transgressora como poucas no campeonato dos super-heróis e recontextualizando-a num clima de segregação racial, "LOVECRAFT COUNTRY" revela algumas semelhanças ao também partir de um mergulho no racismo nos EUA através da inspiração assumida em géneros literários populares (e muitas vezes considerados menores), caso de romances de cordel onde tanto cabem contos de fantasia e ficção científica como de terror e aventura (e a banda desenhada também tem uma palavra a dizer aqui).

A sequência inicial, com uma invasão extraterrestre in media res, dá logo conta da lógica de vale tudo dominante nesta narrativa, mesmo que boa parte do que se segue seja muito mais terra-a-terra, a lembrar mais o retrato de época dos anos 50 na linha de um "Green Book - Um Guia Para a Vida" - aqui a debruçar-se sobre uma comunidade negra de Chicago. Mas se o filme de Peter Farrelly era bem-comportado, a série criada por Misha Green (argumentista de "Heroes" ou "Sons of Anarchy") e baseada no romance homónimo de Matt Ruff não tem medo de sujar as mãos enquanto expõe a diferença de tratamento a que os cidadãos afro-americanos eram sujeitos, num primeiro episódio que tanto dá conta do preconceito em cenas prosaicas, do quotidiano de um bairro, como a leva ao limite numa recta final tão vertiginosa como delirante - e sem medo de se atirar ao camp ou ao gore.

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A viragem para terrenos do humor negro e do terror chega a lembrar alguns momentos de "Foge", de Jordan Peele, e não por acaso o realizador é um dos produtores executivos, juntamente com J. J. Abrams. Yann Demange, cujos créditos incluem "Top Boy" e "'71", realiza o primeiro episódio e sai-se bem na gestão de uma tensão que se vai adensando num acumular de situações-limite. Talvez até sejam demasiadas, embora fique na retina uma perseguição automóvel trepidante que coloca em cena vilões deliberadamente caricaturais. E enquanto qualquer tentação de realismo vai ficando cada vez mais para trás, Jonathan Majors não deixa de ser um protagonista credível na pele de um ex-soldado da Guerra da Coreia que se faz à estrada à procura do pai - ele que também integrou o elenco do recente "Da 5 Bloods": Irmãos de Armas", de Spike Lee, filme menos ágil no balanço de gravidade e irrisão.

Jurnee Smollett e Courtney B. Vance, com menos tempo de antena (sobretudo ela), dão corpo e carisma a companheiros de viagem com potencial para alargar os ângulos temáticos de uma série já de si ambiciosa. No arranque, há espaço para uma vénia a James Baldwin e outra a Alexandre Dumas, sem esquecer a herança mais evidente de H. P. Lovecraft, escritor decisivo na abordagem ao terror cuja reputação ficou manchada pela postura racista. Mas uma série como "LOVECRAFT COUNTRY" prova que ainda é possível continuar a revisitar e homenagear a sua obra, apesar das falhas.

"LOVECRAFT COUNTRY" estreou a 17 de Agosto na HBO Portugal e o primeiro episódio foi disponibilizado gratuitamente. Os próximos estreiam às segundas-feiras.