Houve festa (rock, disco, pop) na cidade
Mesmo tendo posto de lado o tradicional dia do metal, a edição que marcou os dez anos do Rock in Rio em Portugal deu mais palcos às guitarras do que algumas das anteriores sem deixar de picar outros géneros. Talvez ainda não o suficiente para convencer alguns melómanos desconfiados com a música - para alguns, ruído - bombardeada pela colecção de bancas promocionais do recinto, é certo.
A vertente de entretenimento para toda a família continua a sobrepor-se à de festival e não parece dar tréguas, mas isso não impediu que os Arcade Fire dessem um dos concertos do ano na Bela Vista, neste sábado - e o melhor concerto rock do Rock in Rio Lisboa 2014, pelo menos para quem não conseguiu ver Rolling Stones nem Queens of the Stone Age.
"Reflektor", o último álbum dos canadianos, já tinha sido uma surpresa para muitos dos que apontavam algum comodismo ao antecessor, "The Suburbs", e essa vitalidade transpareceu num alinhamento mais expansivo, capaz de abraçar o tom épico associado à banda desde os primórdios até ambientes lânguidos e tropicais muito bem representados por "Here Comes the Night Time" (final féerico com chuva de confetti, num furacão a competir com o de Ivete Sangalo dias antes) ou "Flashbulb Eyes" (incursão dub mais convincente em palco do que em disco).
A velhinha "Haiti" relembrou que o sol também já brilhava, embora não tanto, nos tempos de "Funeral", e só a interrupção (dupla) de "Month of May" refreou um pouco os ânimos depois de um arranque vigoroso. Win Butler soube agarrar o momento e evitou o flop com uma versão de "My Body Is a Cage" que pediu energia (e voz) ao público... e o público deu. Sem trocar muitas mais palavras com os espectadores, o vocalista deixou "uma canção sobre a saudade", "The Suburbs", que não ficou entre os picos de euforia sonora da noite mas foi das mais sentidas (ou assim pareceu, com milhares a gritar "I'm movin' past the feeling").
A dança ficou por conta de clássicos como a dupla imbatível "Neighborhood #3 (Power Out)" e "Rebellion (Lies)", responsável por um arranque flamejante depois de "Reflektor" mostrar estar a caminho desse estatuto. "No Cars Go" é outra que resulta sempre ("Hey!") e "Normal Person" foi perfeita para arrebitar uma recta final mais contemplativa onde se ouviu "It's Never Over (Oh Orpheus)", com Régine Chassagne em modo celestial no meio do público (e com direito a um esqueleto como acompanhante) a cantar de frente para Win, no palco. Envolvente pela abordagem cénica, a canção, menos directa do que a maioria do alinhamento, nem sempre agarrou 47500 espectadores, e da faceta tranquila o destaque irá para o "Rococo" in Rio, com um coro colectivo a entoar o título desse tema.
E quando um alinhamento destes é defendido por uma grande banda - na entrega e no número de músicos, dos sopros aos metais - que pareceu ainda maior com a entrada em palco dos Reflektors (ou cabeçudos, como muitos espectadores os apelidaram), o resultado só podia ser um triunfo. O entrosamento entre festa e melancolia pode ter ficado ligeiramente abaixo do que se viu no Super Bock Super Rock de 2011, no Meco, imune a quebras de ritmo e de som, mas um concerto não é decepcionante por ficar a uns degraus da perfeição.
Quem também não pareceu ter saído decepcionado na noite de sábado foi o público de Lorde. Ou talvez apenas de "Royals"? A dúvida era legítima, tendo em conta o airplay excessivo desse single e ridiculamente reduzido dos outros temas de "Pure Heroine" (a paciência de tantos ouvintes para massacres radiofónicos merecia ser objecto de estudo). Mas o álbum de estreia da neozelandesa tem mais (e melhores) argumentos a seu favor, algo bem evidente numa actuação com coragem para dispensar qualquer espalhafato e valorizar a música.
O minimalismo talvez tenha sido demasiado austero para o Palco Mundo: uma cantora, um teclista, um baterista, pouquíssimos vídeos e zero adereços. Não fosse a óbvia dimensão do nome - ou, lá está, do single - e o espaço da Electrónica teria servido melhor um espectáculo com estes contornos. Mesmo assim, a pose anti-diva de Ella Marija Lani Yelich-O'Connor foi uma curiosidade inesperada no horário nobre.
Entre algum desconforto, ou pelo menos estranheza, acompanhado de palavras e olhares emocionados - que, ao contrário de outros, não pareceram pré-fabricados -, a cantautora foi surpreendendo e conquistando. A sua pop electrónica discreta, que não se esgota na vertente levemente dançável (as letras têm mesmo algo a dizer), foi mais insinuante do que arrebatadora, mas episódios como o frenético final de "Team", com uma pulsão infecciosa a desviar-se da versão gravada, ou a bonita constelação de smartphones em "Ribs" (inspirada reflexão sobre o crescimento) compensaram a mediania geral. One hit wonder? "Let them talk", disparou a neo-zelandesa no final, com a óptima "A World Alone".
Se Lorde, apesar das fragilidades de principiante, consegue esboçar um universo pessoal nas suas canções, Justin Timberlake não dá muito mais do que a enésima variação de relatos boy meets girl. Tal como grande parte da pop, alguma dela boa, também é verdade. Mas mesmo dando de barato que ninguém o ouve pelas letras, fica por esclarecer o interesse da maioria da música.
Na sua estreia em Portugal, no domingo, o ex-'N Sync mostrou simpatia, empenho, descontração e capacidades como dançarino e cantor. Talvez nem fosse preciso tanto: a julgar pelas reacções efusivas de muitos dos 80 mil espectadores, bastava-lhe aparecer e deixar que o palminho de cara e a fatiota impecável fizessem o resto. Veio bem acompanhado, com os Tennessee Kids, cujas dezenas de músicos tiveram espaço para brilhar e asseguraram um profissionalismo também visível nos bailarinos e coreografias.
Infelizmente, esse competência foi desperdiçada num cocktail funk/R&B/rock ora bombástico ora sonolento, quase sempre vazio. Os momentos mais dinâmicos ancoraram-se nos ritmos sincopados via Timbaland, minimamente eficazes quando o objectivo é dançar mas com poucas composições que os valorizem. Ainda assim, foram preferíveis às baladas, que reforçaram a insistência no falsete e foram mais de cantautor de segunda linha do que de um suposto rei da pop (as da rainha dão-lhe dez a zero). As versões de Michael Jackson e Jackson 5 não mudaram muito o cenário e a de "Heartbreak Hotel", de Elvis Presley, valeu mais pela diferença face ao alinhamento do que por sinais particulares de Timberlake.
Mas o pior foi a guitarrada à la Def Leppard a assassinar "My Love", pop sintética com potencial para ser um dos picos da noite antes de sofrer o tratamento "Guitar Hero" também empregue em "Cry Me a River". Salvou-se o ambiente futurista de "LoveStoned/I Think She Knows" (com imagens computadorizadas a complementar bem a canção), a interação particularmente feliz de "Take Back The Night", com a banda a mostrar gozo e garra, ou o colosso dançável "SexyBack", cereja em cima de um bolo com muita cobertura mas pouco recheio.
Já o concerto dos Hercules and Love Affair, sexta-feira, só foi pequeno na duração e na quantidade de público que convocou. Um dos destaques de uma noite especialmente forte na Electrónica - por onde passaram ainda Octa Push, Bis Boys Please ou Tiga -, o projecto de Andy Butler, longe de ser novidade nos palcos portugueses, é sempre sinónimo de festa garantida. A celebração na Cidade do Rock não foi tão exuberante como no Optimus Alive ou no Lux, em ocasiões anteriores, embora não por falta de entusiasmo dos nova-iorquinos.
Se o espectáculo de Lorde talvez ganhasse na Electrónica, a energia destes dois vocalistas não se deixaria intimidar pelo Palco Mundo. Mas actuar no mesmo horário que os Linkin Park levou a que a festa não tenha arrancado com mais do que algumas dezenas, apesar de tudo alargadas ao fim de uma hora, com uma moldura humana bem mais expressiva e desperta.
O terceiro álbum, "The Feast of the Broken Heart", editado na semana passada, foi o pretexto para o regresso e dominou o alinhamento, com uma homogeneidade house de inícios de 90 a limar contrastes de outros concertos do grupo por cá (e a reduzir sobretudo a carga disco). Versões de temas mais antigos como "Blind" ou "Painted Eyes" (melhor a segunda do que a primeira) souberam a pouco, mas não abalaram um espectáculo por vezes viciante, quase sempre divertido e com um activismo LGBT mais denunciado (tanto nas letras das novas canções como nas declarações dos dois mestres de cerimónias e do próprio Butler, mentor e DJ de serviço). Venha mais um regresso em nome próprio, sff..
Fotos @Agência Zero/ Site oficial Rock in Rio Lisboa