Inocente ou culpado?
Brilhante relato familiar e jurídico, "A ACUSAÇÃO" parte de um caso de assédio e violação para contrastar e questionar perspectivas sobre os limites do consentimento. Yvan Attal, acompanhado de um elenco em grande forma, assina um filme didáctico no melhor sentido do termo.
Uma adolescente acusa um rapaz um pouco mais velho, estudante universitário, de a ter violado, depois de a ter obrigado a fumar e a consumir álcool numa festa em Paris. O acusado, filho da companheira do pai da alegada vítima, garante que houve consentimento mútuo, após ter negado o acto nas primeiras declarações à polícia. Mas os depoimentos dela também não são inteiramente coerentes nas suas versões iniciais e finais.
Onde está a verdade? É a questão que o realizador de "A Minha Mulher é Actriz" (2001) e "O Poder da Palavra" (2017) lança no seu filme mais recente, mas os espectadores que procurarem uma resposta clara e confortável poderão sair desiludidos. Como uma personagem menciona a certa altura, o cineasta franco-israelita mergulha na "zona cinzenta" que permeia as relações humanas ("Les Choses Humaines", não por acaso, é o título original), sobretudo em cenários em que a fronteira entre sedução e assédio sexual não só é difusa como pode ser extremamente variável de pessoa para pessoa, de experiência para experiência.
É terreno pantanoso, este, mas percorrido de forma inspirada nos últimos anos por gente tão diferente como Ridley Scott, em "O Último Duelo" (2021), ou Michaela Coel, na série "I May Destroy You" (2020). Ou ainda no sobrevalorizado "Tár", de Todd Field, também em cartaz, embora o filme de Attal seja bem mais contundente e opte por um olhar mais amplo sobre questões do (pós)feminismo, do fenómeno #MeToo, de privilégio e da cultura do cancelamento.
A panela de pressão de "A ACUSAÇÃO" junta também sintomas de dramas dos imigrantes e o eventual impacto da arte ou da religião no comportamento da dupla protagonista, sem que estas mais de duas horas pareçam excessivas. Pelo contrário, a mistura de drama familiar, thriller realista e filme de tribunal é impecavelmente arquitectada e escrita, meticulosa mas capaz de dar espaço às personagens e às suas razões. E também às tensões entre a sua esfera pública e privada, desde logo porque a família do acusado faz parte da elite intelectual parisiense e o caso não escapa ao escrutínio mediático, da imprensa às redes sociais.
Baseado no romance homónimo de Karine Tuil, publicado em 2019, que por sua vez assentava num caso verídico de violação que também envolvia um estudante universitário de Stanford, "A ACUSAÇÃO" tem créditos de argumento partilhados entre o realizador e Yaël Langmann.
Curiosamente, os dois primeiros segmentos do filme também contemplam uma perspectiva no masculino e no feminino, respectivamente, da noite que desencadeou o processo. Já o terceiro alterna cenas do julgamento com flashbacks estrategicamente integrados na montagem, num hábil exercício de suspense que tem tensão à altura nos argumentos eloquentes dos advogados de defesa e de acusação - capazes de desafiar certezas dos jurados e dos espectadores. Mas o triunfo da palavra nessas cenas não impede o fulgor visual, cortesia de planos-sequência sem tentações de virtuosismo.
Esse tom justo tem alicerces firmes nas interpretações de um elenco coeso, e em parte muito lá de casa. Ben Attal, que encarna o protagonista, é filho do realizador e de Charlotte Gainsbourg, que surge aqui na pele de mãe do acusado (e dá continuidade a uma escolha de papéis inatacável nos últimos anos, de "Suzanna Andler" a "Crepúsculo" ou "Os Passageiros da Noite").
Outros veteranos, Mathieu Kassovitz e Pierre Arditi encarnam homens em polos opostos do caso e intimamente ligados à mesma mulher, de formas distintas - e o modo como o processo abala a relação do primeiro é dos elementos mais comoventes deste novelo de segredos, mentiras e imprecisões. Já Suzanne Jouannet sobressai enquanto actriz-revelação de um (óptimo) filme que, apesar dos muitos temas a que se atira, nunca deixa que estes se sobreponham às especificidades das suas personagens - para o melhor e para o pior, sejam elas culpadas ou nem por isso...
4/5