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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Já não se pode ser bom...

Quem acredita que as boas acções são sempre recompensadas é bem capaz de mudar de ideias ao ver "GLÓRIA". Farsa aguçada sobre os absurdos e abusos da teia política e mediática, o novo filme de Kristina Grozeva e Petar Valchanov confirma o olhar atento da dupla búlgara numa estreia avessa à silly season.

 

Gloria

 

Depois do retrato do sistema de ensino de "A Lição" (2014), o realismo social volta a dominar o universo de Kristina Grozeva e Petar Valchanov, agora com tons mais carregados de comédia negra. O que inicialmente se insinua como uma crítica aos ridículos da burocracia contemporânea, a partir de uma situação comum, vai aqui ganhando contornos mais densos e abrangentes até chegar a um ensaio sobre a falta de civismo e a desumanização das relações modernas, no mundo empresarial mas não só, e que decididamente tem um âmbito mais alargado do que a realidade búlgara.

 

Tudo começa com o acto de boa fé de um trabalhador ferroviário que decide entregar às autoridades uma grande quantia de dinheiro que encontrou. Só que esse discreto gesto isolado acaba por levar a um inesperado circo mediático, atirando um homem pacato e solitário para um círculo que não conhece, mas ao qual é obrigado a voltar quando uma chefe de departamento de relações públicas fica com o seu relógio por lapso - e não está especialmente preocupada em devolvê-lo, com uma rotina acelerada dividida entre os cuidados com a gravidez e um emprego sufocante.

 

Gloria

 

Alternando entre o quotidiano dos dois protagonistas, "GLÓRIA" vai mudando a acção da agitação urbana para a calmaria entorpecida de ambientes rurais, os bastidores do poder e os mais esquecidos por este, montra de um país de contrastes que tem paralelo noutros vizinhos da nova Europa. E vai também extremando de forma paciente a índole das suas personagens, com o egoísmo e integridade iniciais - dela e dele, respectivamente - a adquirirem estados mais ambíguos.

 

Não fosse o humor que percorre o drama, ora seco ora quase burlesco (como numa cena com a bandeira da União Europeia em destaque), e o filme talvez corresse o risco de cair para o mero objecto de denúncia. Mas a dupla de realizadores não só dispensa o traço grosso do retrato como oferece protagonistas com uma vida interior palpável, feito que também é mérito dos actores - Stefan Denolyubov em modo lacónico e implosivo, Margita Gosheva vibrante e imparável. A actriz tem, aliás, um papel especialmente ingrato ao encarnar uma personagem muitas vezes insensível e calculista, mas que "GLÓRIA" nunca reduz a vilã de serviço. E se é verdade que o argumento não evita um certo esquematismo, o modo como se agarra aos protagonistas (mesmo até à penúltima cena) nunca deixa de entusiasmar enquanto inquieta...