Laços de família(s)
Através do acerto do elenco ou da segurança narrativa, "A FILHA" é uma primeira obra que dá nova vida a uma história clássica e temas intemporais. E sugere que, além de encenador e actor, Simon Stone pode muito bem ser cineasta a seguir.
A cinematografia australiana recente não tem tido especial expressão nas salas portuguesas, mas há logo um elemento que salta à vista na estreia na realização de Simon Stone: a direcção de actores, tão exigente e confiável como a de outros dramas conterrâneos dos últimos anos, caso de "Lantana" ou "Jindabyne", de Ray Lawrence, ou "Reino Animal", de David Michôd.
Tal como esses filmes, "A FILHA" junta um elenco de veteranos a algumas novas apostas e centra-se no retrato de várias personagens de uma pequena comunidade. E ainda que aqui o crime não seja a alavanca narrativa, há um ambiente implosivo com algo de trágico, pano de fundo de um novelo de segredos pacientemente desenrolado ao longo de hora e meia.
Mas se Stone terá alguns pontos de contacto com outros realizadores australianos revelados nos últimos anos, também é verdade que começa por se distinguir na escolha do material de base, a peça "O Pato Selvagem" (1884), de Henrik Ibsen, que já tinha adaptado (com distinção local) no teatro. No salto para o grande ecrã, a sua visão afasta-se ainda mais do original, mantendo o esqueleto da construção dramática enquanto contextualiza a trama do autor norueguês na Austrália contemporânea.
O olhar sobre a pequena localidade industrial na qual decorre a acção é, de resto, um dos traços que ajudam a conferir uma personalidade vincada a "A FILHA", com os espaços a a figuras a tornarem-se ainda mais palpáveis quando o realizador se concentra nos elementos de duas famílias - unidas pelo trabalho e pela amizade, afastadas pelas clivagens sociais e por uma revelação que pode dinamitar as estruturas.
Antes de chegar ao inevitável episódio caótico insinuado (talvez até demais) desde os primeiros instantes, Stone dá, e bem, tempo aos actores e a personagens que nunca são encaradas como meras peças de um jogo de reviravoltas. E mesmo que o título do filme até possa ser um spoiler (pelo menos a partir de uma certa fase da narrativa), a óbvia empatia do realizador pelas pessoas que filma não só compensa um não tão surpreendente terceiro acto como ajuda a dar peso dramático a situações que, noutras mãos, poderiam parecer telenovelescas.
Os actores, lá está, também são determinantes, ou não se encontrasse aqui um dos melhores elencos dos últimos tempos. Geoffrey Rush e Sam Neill já pouco terão a provar, mas é bom vê-los em papéis com alguma intensidade, e o triângulo (não amoroso) de Paul Schneider, Ewen Leslie e Miranda Otto não fica atrás da entrega desses dois veteranos. Mas o coração do filme pertence a Odessa Young, jovem actriz que encarna a enésima adolescente à beira de um ataque de nervos sem provocar a irritação de tantos desempenhos à partida comparáveis - muito pelo contrário, ajusta-se a uma personagem curiosa, simultaneamente obstinada e vulnerável, que recusa limitar-se a um estereótipo.
Apesar da experiência teatral, Stone não se limita a filmar os actores e sabe desenhar uma atmosfera realista com espaço de manobra para algum simbolismo - sem nunca se afastar para delírios abstractos -, munindo-se de cenários e fotografia outonais e de uma banda sonora que torna turvos até os momentos aparentemente mais descontraídos. Esses sublinhados, talvez demasiado monocromáticos, não chegam a afogar as personagens nem a carga emocional que forra "A FILHA", desde um arranque envolvente a um final algo agreste, mas também coerente e corajoso - pelo menos para quem não esperar aqui um crowd-pleaser...