Meninas e moças
A adolescência no feminino (mas não só) é o território de "AS MIL E UMA", da argentina Clarisa Navas. Vale muito a pena explorá-lo com ela numa sala de cinema.
Depois de ter sido uma das apostas do Queer Lisboa do ano passado, a segunda longa-metragem da autora de "Hoy partido a las 3" (2017) tem direito a estreia comercial (embora muito discreta) e revela-se mais um motivo para acompanhar o novo cinema argentino (que vai chegando pontualmente a salas portuguesas através da obra de consagrados como Lucrecia Martel ou Marco Berger e revelações na linha de "Marilyn").
Ambientado num bairro suburbano e empobrecido de Corrientes, no norte do país e no qual a realizadora cresceu, é dos casos que provam que menos pode ser mais ao desenhar um retrato imersivo de uma adolescente e de quem habita o seu quotidiano - sobretudo dois primos da mesma idade com quem partilha medos e aspirações e uma rapariga alvo de boatos discriminatórios, de quem se aproxima tímida e cautelosamente.
Drama realista e observacional, mais interessado em seguir as personagens sem pressa do que em arrumá-las numa narrativa estanque, "AS MIL E UMA" ganha facilmente lugar entre as crónicas coming of age mais francas, despojadas e comoventes dos últimos tempos, além de contar com uma espontaneidade invejável.
Navas demonstra um carinho óbvio por estes miúdos à procura do seu lugar (enquanto ensaiam formas de viver a sexualidade e o amor) e tem um controlo formal que sai valorizado tanto nos longos planos fixos como em planos-sequência com recurso à câmara à mão. E através de deambulações mais ou menos românticas pelas ruas ou conversas de cama fraternais aborda a curiosidade e o risco que atravessam o dia a dia num cenário de precariedade - vincado pela misoginia, prostituição, toxicodependência ou fantasmas do HIV, sem que o tom se torne miserabilista.
A homofobia também marca um retrato que dispensa vitimizações, mas mais curioso e invulgar é o olhar (subtil, embora presente) sobre questões de consentimento e abuso dentro da própria comunidade LGBTQI+, pouco explorados até mesmo no cinema queer.
Às vezes próximo de uma linguagem documental, "AS MIL E UMA" dá igualmente visibilidade aos dilemas de pessoas trans, também aí de uma forma genuína e a valer-se de um elenco que conjuga actores profissionais e amadores (muitos residentes do bairro onde decorre a acção). E se ao longo destas duas horas os adultos parecem estar quase sempre fora de campo, isso é mais feitio do que defeito: Navas deixa uma ode sensível ao entusiasmo, companheirismo e liberdade da adolescência, a dias em que parece não acontecer nada mas acontece (e muda) tudo. Temos realizadora, portanto - e um dos filmes do ano.
4/5