Mulher do século XXI
Retrato familiar a partir de uma mulher à beira de um ataque de nervos, "COMO NOSSOS PAIS" é já a quarta longa-metragem de Laís Bodanzky mas a primeira a ter honras de estreia por cá. E parece dar razão a quem vê na realizadora um dos nomes a não deixar passar do cinema brasileiro dos últimos anos.
Autora de títulos elogiados como "Bicho de Sete Cabeças" (2000) ou "As Melhores Coisas do Mundo" (2010), além de curtas e documentários, Laís Bodanzky conta com um currículo prolífico desde finais da década de 90 - que inclui também passagens pelo pequeno ecrã -, embora deste lado do Atlântico não tenha tido grande repercussão. Mas no ano passado o seu drama mais recente, "COMO NOSSOS PAIS", foi acolhido com algum entusiasmo no Festival de Berlim e terá funcionado como porta de entrada para a obra da realizadora junto de muitos - daquelas que deixam curiosidade em conhecer o que está para trás.
No papel, a situação de Rosa, a protagonista, não é muito diferente das de mulheres de muitas telenovelas, tendo em conta o caos instalado na sua vida pessoal e profissional. O filme arranca logo com um almoço de família que se pretende harmonioso mas no qual, claro, tudo vai de mal a pior. E entre a chuva que se intromete, as discussões dos adultos e as birras das crianças, ainda há espaço para uma revelação capaz de destruir relações, cortesia da mãe de Rosa - que juntamente com o marido da protagonista, parede destinada a personagem pronta a odiar.
A notícia acaba por ser a machadada final num ciclo de ansiedade que, como o filme vai dando conta, já domina a vida desta mulher perto da casa dos 40 há muito e chega agora a um ponto de viragem, obrigando-a a reavaliar todos os seus laços e compromissos - seja com um emprego na qual não se sente realizada (e que a força a adiar a paixão pela escrita de ficção), com um homem que fica aquém das responsabilidades familiares e financeiras ou com a mãe, figura de temperamento e postura nos antípodas dos seus.
Se este ponto de partida pode sugerir um dramalhão, "COMO NOSSOS PAIS" vai revelando mais nuances do que aquilo que o primeiro embate dá a entender, mostrando-se tão realista quanto perspicaz enquanto segue uma protagonista que tenta lidar com as expectativas criadas por si e pelos outros. E deste fosso entre controlo e liberdade, ordem e transgressão, sai um olhar sobre a classe média brasileira capaz de um compromisso entre o singular e o universal, ao qual Laís Bodanzky confere especificidade sem impedir que os dilemas de Rosa correspondam ao de muitas mulheres fora de portas.
A ligação da protagonista ao clássico "Casa de Bonecas", de Henrik Ibsen, não é muito subtil ao fazer a ponte entre os desafios das mulheres de hoje e os que enfrentavam há dois séculos, mas felizmente o filme também não promove Rosa (nem outras figuras femininas) a joguetes de um panfleto feminista ou de um estudo sociológico. As personagens são, aliás, dos maiores trunfos de "COMO NOSSOS PAIS", já que nem a principal é caracterizada como vítima das circunstâncias nem as secundárias ficam reféns dos seus momentos menos felizes. E o elenco está à altura, de Maria Ribeiro como protagonista incansável e inquieta a uma imperial Clarisse Abujamra, na pele de mãe que não pede desculpa por ser como é, passando por Paulo Vilhena como marido demasiado ausente mas imune a julgamentos do argumento.
Embora estique a corda da plausibilidade em duas ou três ocasiões (nos subenredos do desvendar de um segredo do passado ou de uma nova hipótese de relacionamento amoroso), Bodanzky sai-se muito bem nas cenas domésticas, como as do casal protagonista ao lado das filhas (algumas das mais comoventes, seja nos episódios mais doces ou nos mais tensos) e compensa uma certa dispersão em duas ou três lições de economia narrativa - visíveis na sequência de um funeral ou nos planos fixos que focam dois quartos da casa de Rosa em simultâneo. E ao conciliar esse rigor formal com uma história claramente dirigida ao grande público, "COMO NOSSOS PAIS" vem dar continuidade a outros retratos familiares da classe média (e com mulheres no centro) nos quais o cinema brasileiro tem sido relativamente fértil em tempos recentes - de "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert, a "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho. Alguns realizadores portugueses bem lhes podiam prestar atenção...
3,5/5
"COMO NOSSOS PAIS" é o filme de abertura do FESTin 2018, que arranca esta terça-feira no Cinema São Jorge, em Lisboa, e tem estreia nacional a 15 de Março.