Nascidos para matar
Por um lado, "Fúria" revisita situações e cenários próximos dos de outros filmes de guerra, com "O Sargento da Força Um" ou "O Resgate do Soldado Ryan" à cabeça, movendo-se por vezes em terreno demasiado reconhecível. Por outro, a nova obra de David Ayer surpreende por ser um monolítico de crueza e desencanto - tão seguro e à prova de bala como o tanque no qual decorre grande parte da acção - que talvez não se esperasse tendo em conta a filmografia do seu autor.
"Fim de Turno" já tinha apresentado um drama envolvente, então com dois polícias, mais equilibrado do que o que estava para trás, e o realizador norte-americano sai-se igualmente bem neste mergulho nos finais Segunda Guerra Mundial centrado em cinco soldados dos Aliados na Alemanha.
Do quinteto, a dupla do sargento e do recruta mais jovem merece atenção especial e lembra a dinâmica entre veterano e novato já vista e revista - em filmes de guerra e noutros, como "Dia de Treino", de Antoine Fuqua, com argumento de Ayer. Mas Brad Pitt e o muito promissor Logan Lerman (aqui a tentar afastar-se da imagem adolescente de Percy Jackson) são tão convincentes, tanto nos momentos de choque como de empatia, que a abordagem de "Fúria" acaba por parecer mais fresca do que o que realmente é.
Os outros soldados não são menos credíveis e, também por isso, é pena que o filme nunca lhes dê tanto tempo de antena. Ainda assim, todos acabam por ter espaço para brilhar: Michael Peña cumpre, mesmo sem poder mostrar o que vale como em "Fim de Turno", Shia LaBeouf comprova que há actor para além das polémicas e Jon Bernthal chega a roubar algumas cenas aos protagonistas na pele da personagem mais imprevisível e explosiva do grupo.
Além de escolher os actores a dedo, Ayer sobressai pelo realismo e intensidade, temperados com algum humor negro, que injecta na maioria destas mais de duas horas pouco preocupadas em apontar inocentes ou culpados - quem esperar um filme de guerra patriótico e insuflado de heroísmo não o encontra aqui, uma das maiores vantagens face ao sobrevalorizado título de Spielberg no qual se poderá ter inspirado.
A forma metódica, rigorosa, e no entanto nervosa com que o realizador filma sequências de combate também eleva "Fúria" acima de boa parte da concorrência - no departamento de blockbusters, então, é cada vez mais raro termos direito a cenas de acção tão bem orquestradas como a do confronto entre dois tanques, a milhas do registo de videoclip hiperactivo com câmara à mão. Mais surpreendente é o abandono do tanque para concentrar a tensão na casa de duas alemãs, pico dramático de um filme a espaços demasiado convencional e linear mas capaz de compensar em desvios como esse - e a ocasião sublinha, talvez como nenhuma outra, a aliança inabalável entre realizador e elenco.
Contasse o desfecho com uma sequência desse fôlego e "Fúria" teria um impacto mais forte e inquietante. Infelizmente, e apesar das valências técnicas de Ayer na sucessão de disparos (já agora, a fotografia cor de chumbo com que Roman Vasyanov forra o filme não lhe fica atrás e não podia ser mais apropriada), os últimos minutos tornam-se mais arrastados do que empolgantes. Mas se o arco narrativo do quinteto podia ser mais bem resolvido, o final não chega a diluir o impacto emocional de uma viagem com muito a reter.