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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Nem todo o entretenimento é pastilha elástica

Falar de questões sérias sem se levar demasiado a sério: é esta a proposta de Michaela Coel em "I MAY DESTROY YOU", cuja primeira temporada estreou esta segunda-feira na HBO Portugal e olha para a fronteira entre consentimento e abuso nas relações de hoje.

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De pequenas participações em "Top Boy" ou "London Spy" a papéis de maior protagonismo em "Black Mirror" e "Black Earth Rising", Michaela Coel tem reforçado a presença no pequeno ecrã nos últimos anos (e pontualmente no grande, incluindo "Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi"). Mas foi com "Pastilha Elástica" (2015), série da sua autoria (e bem aconselhável), disponível na Netflix, que a britânica de ascendência ganesa conciliou as suas valências de actriz com a de argumentista, funções que volta a assumir na sua nova aposta, agora através da BBC e da HBO, da qual é ainda uma das realizadoras.

O humor e o sexo, dois dos ingredientes-chave da produção antecessora, também marcam os 12 episódios de um relato parcialmente auto-biográfico, embora a componente dramática possa sair a ganhar numa história que parte de uma situação de abuso sexual vivida pela protagonista, uma escritora londrina na fase inicial da carreira (novamente interpretada pela própria autora).

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Não é uma mudança de rumo inesperada, considerando que Cole se destacou entre as vozes inconformadas do movimento #MeToo (em 2018, quando confessou que foi vítima de violação), mas ao contrário de outras ficções sobre o tema inspiradas em casos verídicos, esta não parece ficar limitada a um mero objecto de denúncia. Durante boa parte do tempo, o primeiro episódio até lembra mais a leveza e descontração de "Insecure" outra série recente (e também da HBO) centrada no quotidiano afectivo e profissional de uma jovem mulher negra, urbana e cosmopolita, do que um drama assombrado pelo peso de um trauma.

Em menos de meia-hora, o arranque desenha não só o intrincado círculo de figuras próximas da personagem principal como dá conta das pressões laborais a que é sujeita, muito por culpa de uma estadia em Itália que deveria ter servido para a escrita do seu segundo livro e acabou por encorajar a procrastinação - além de um flirt que promete ser reatado.

O facto de "I MAY DESTROY YOU" não julgar a protagonista, mesmo que exponha as suas limitações profissionais, é um bom indicador de que Coel poderá ser capaz de evitar um território ardiloso de vítimas e agressores estereotipados. E além das ramificações do desfecho abusivo e desconcertante de uma noite de festa, copos e drogas, a série dá sinais de querer explorar elementos presentes nas relações contemporâneas a partir das personagens secundárias, do questionamento da monogamia às novas dinâmicas criadas pela profusão de aplicações de encontros. Agora é esperar, semana a semana, que o resultado esteja à altura da ambição e das pistas habilmente lançadas pelo piloto.