No (saber) misturar é que está o ganho
Tem passado despercebida no catálogo da Netflix, mas é das maiores surpresas de 2020 até agora. Partindo de territórios do policial, "GIRI / HAJI: DEVER / VERGONHA" vai aceitando contaminações de outros géneros numa primeira temporada criativamente fervilhante - e com o ritmo a acompanhar a imaginação.
Estreada na BBC Two no final do ano passado, esta série da autoria do britânico Joe Barton (argumentista de "iBoy" ou de alguns episódios da óptima "Humans") chegou a Portugal via streaming há poucos meses, mas tem sido uma das que ficaram ofuscadas entre a dose de novidades mais sonantes. Um caso particularmente injusto quando oferece uma amálgama de géneros tão entusiasmante como delirante, ao cruzar o que arranca como um conflito convencional q.b. entre dois irmãos (o mais velho, um polícia de Tóquio; o mais novo, um criminoso que foge para Inglaterra) e acaba a desafiar as expectativas do espectador.
Sim, esta é uma história de honra, união, traição e redenção centrada numa família japonesa, mas em simultâneo um thriller intercontinental que vai das rixas locais dos Yakuza ao submundo londrino, com desvios para um relato coming of age e coming out e, mais à frente, para um road movie sobre a solidariedade e resiliência feminina. E é notável que consiga saltar entre tons e influências sem perder a coerência e a fluidez durante a maior parte do tempo, seja entre a violência mais gráfica ou um humor desarmante, com personagens de corpo inteiro e um arrojo formal que não as ofusca (incluindo split screens ou sequências de animação inspiradas pelo anime, escolhas estéticas e narrativas empregues de forma comedida).
O estado de graça só começar a esmorecer mesmo no final, com um último episódio aquém do que está para trás, e a não resolver tantas narrativas cruzadas com rasgo à altura. Mas até esse remate tem pelo menos uma sequência de antologia (no terraço de um arranha-céus), com um arrojo maior do que a vida e sem grandes paralelos no pequeno (ou grande) ecrã ultimamente. E há que aplaudir ainda a direcção de actores, num elenco que junta Kelly Macdonald ou Justin Long aos asiáticos Takehiro Hira e Yōsuke Kubozuka, embora Will Sharpe roube quase todas as cenas ao encarnar a personagem mais carismática: Rodney, um prostituto gay inglês de ascendência oriental, autor de uma colecção de frases certeiras e hilariantes enquanto ajuda a evitar que este thriller se torne sisudo, apesar de não lhe faltar tensão e peso dramático. Quem gostou de "Parasitas" (toda a gente?) é bem capaz de ter aqui muito para apreciar.
Preciosidade extra: as recapitulações dos episódios, exemplos de brilhantismo formal (com animação de aguarela) que merecem ser vistos mesmo em binge-watching.
4/5