O acossado
As crianças não mentem, defenderá muito boa gente. Já o protagonista de "A Caça" não será tão taxativo, muito pelo contrário, sobretudo depois de ser acusado de abusos sexuais por uma criança do jardim de infância onde trabalha, numa pequena localidade dinamarquesa. A suspeita, embora falsa, é tida como verdade inquestionável por quase toda a comunidade e Lucas passa de professor discreto e confiável a inimigo público número um com uma rapidez desarmante.
Thomas Vinterberg, que no final dos anos 90 se distinguiu com "A Festa", um dos títulos centrais do movimento Dogma 95, regressa a terreno pantanoso depois de uma filmografia entretanto quase ignorada - nem Joaquin Phoenix nem Claire Danes salvaram "O Amor É Tudo", "Querida Wendy" foi uma variação falhada do western e os filmes seguintes do dinamarquês nem tiveram direito a estreia por cá.
"A Caça", no entanto, acaba por ser uma óptima surpresa, nomeada para Melhor Filme Estrangeiro nos Óscares deste ano e uma obra mais adulta do que boa parte das escolhas das categorias principais. E será mais adulta não tanto pela temática, ainda que esta esteja entre as mais controversas que se poderiam escolher, mas pela maturidade demonstrada por Vinterberg num retrato a milhas da histeria maniqueísta presente em muitas abordagens à pedofilia na ficção.
Se o realizador até atira o protagonista para a lama, também lhe concede uma dignidade capaz de elevar o resultado acima de um relato de vitimização fácil. O mérito é inegavelmente partilhado com Mads Mikkelsen, cuja excelente interpretação torna credível uma personagem a certa altura descrita como demasiado complacente, mas na verdade movida por uma integridade que nunca parece forçada.
A "acusadora" de Lucas, a pequena Klara, é o outro dos trunfos, mais do que mera alavanca do argumento e muito bem defendida por Annika Wedderkopp, que vai da ingenuidade inicial a uma inquietação emocional em paralelo com a jornada tumultuosa do protagonista.
De resto, todo o elenco de "A Caça" merece elogios, e até a intromissão do filho de Lucas, que o substitui em algumas sequências, ajuda a dar uma nova dinâmica a um filme que finta quase sempre o óbvio. Quase, porque apesar do palpável desenho da comunidade, entre códigos de comportamento e apropriados tons sépia, Vinterberg é demasiado apressado a criar o efeito de bola de neve da acusação, comprometendo a verossimilhança de uma ou duas cenas decisivas para que o todo possa funcionar. Felizmente, não só funciona como impõe, até aos (certeiros) segundos finais, uma atmosfera de tensão palpitante que não dá descanso ao protagonista. Nem aos espectadores, convocados para testemunhas involuntárias de uma defesa impossível.
4/5