O amor acontece (e inspira canções de fé e devoção)
"What comprises all this joy I feel and where was it before?", pergunta Mackenzie Scott, mais conhecida como TORRES, em "Hug From a Dinosaur", uma das canções do seu novo álbum, "THIRSTIER". Se no disco de estreia homónimo, editado em 2013, a norte-americana partia da folk, da country e do rock de linhagem indie para se debruçar sobre mergulhos interiores (crises de fé incluídas), o quinto longa-duração nasce de um estado de alma bem diferente, e com reflexos óbvios tanto a nível lírico como sonoro.
Tal como o registo anterior, "Silver Tongue" (2020), o mais recente conjunto de canções deve muito ao relacionamento da cantautora com a artista visual Jenna Gribbon. Mas tem uma diferença decisiva: substitui as inquietações dominantes nesse alinhamento por uma estabilidade emocional inédita nesta discografia, o que torna "THIRSTIER" uma ode inesperada ao amor e à cumplicidade.
As primeiras audições dão conta de um álbum que contraria o velho clichê de que só o artista sofredor é capaz de criar uma obra inspirada. Antes pelo contrário: a alegria de uma vida a dois é orgulhosamente partilhada num dos títulos mais consistentes de TORRES, e também dos mais expansivos, explosivos e imediatos.
"Don't Go Puttin Wishes in My Head", o primeiro single, foi uma viragem que poucos esperariam para um hino de estádio na linha de uns The Killers (da melhor colheita), adaptado com convicção à linguagem de Mackenzie Scott. E essa grandiosidade prolonga-se por quase todo o disco, muito por culpa de uma produção que tanto dá espaço ao eléctrico como ao electrónico (este a vincar a segunda metade do alinhamento), dividida entre a autora, Rob Ellis e Peter Miles.
Descendências grunge e até industriais ("Keep the Devil Out", num final abrasivo, não anda longe dos Nine Inch Nails), já sugeridas noutros discos, têm carta branca para se disseminarem em canções quase sempre musculadas e orelhudas ("Constant Tomorrowland" e "Big Leap" são as excepções, elos de ligação com a folk meditativa de registos anteriores). A transição é especialmente brilhante em pérolas como "Drive Me", gritada a plenos pulmões entre riffs efervescentes, ou "Kiss the Corners" e "Hand in the Hair", com uma presença mais notória de sintetizadores.
Qualquer semelhança com algumas vozes ilustres da classe de 90 não será pura coincidência - de PJ Harvey a Liz Phair, dos Garbage às Breeders -, mas TORRES percorre aqui território mais personalizado do que derivativo. "The more of you I drink, the thirstier I get", entoa apaixonadamente na faixa-título, outro ponto alto no qual a devoção e a obsessão se confundem. Quem procurar um dos testemunhos rock mais poderosos dos últimos tempos fará bem em beber desta água...