O corpo é que paga
Três filmes, três olhares sobre o corpo - e as suas limitações e possibilidades - já vistos por estes dias no QUEER LISBOA, a decorrer no Cinema São Jorge e na Cinemateca: "Girl", "It Is Not the Pornographer That Is Perverse" e "Sauvage".
"GIRL", de Lukas Dhont: E se o corpo não aguentar? Esta é a pergunta que o realizador belga vai deixando e sublinhando na sua primeira longa-metragem, retrato implacável mas também terno de uma adolescente transexual que lida com os vários passos da mudança de sexo enquanto persegue, de forma cada vez mais obsessiva, o sonho de se tornar bailarina profissional. "Girl" é bastante hábil e fugir a lugares comuns de relatos de marginalização, ao dar conta de um ambiente familiar e, em boa parte, escolar, que pouco tem de opressivo. O principal entrave de jornada de Lara acaba por ser ela mesma, numa constante fuga para a frente que vai dinamitando o seu quotidiano e o seu corpo. Victor Polster tem um desempenho impressionante ao combinar determinação e fragilidade no papel protagonista, com uma ambiguidade que escapa à vitimização, embora o argumento ameace resvalar para o jogo de massacre - sobretudo nas cenas repetitivas e desnorteantes das aulas de ballet, com direito a câmara epiléptica, num contraste com a graciosidade de outros momentos. O final, demasiado telegrafado e a aproximar-se do filme-choque, reforça essa tendência, e é pena: "Girl" não precisava de malabarismos desses quando oferece um retrato tão emocionalmente rico e depurado durante grande parte do tempo.
3/5
"IT IS NOT THE PORNOGRAPHER THAT IS PERVERSE...", de Bruce LaBruce: Nome habitual na programação do Queer Lisboa, o realizador canadiano viu o seu mais recente filme integrado na secção Hard Nights, a mais sexualmente explícita do festival. Mas como noutras obras suas, a pornografia (gay) é apenas um meio para que o humor e a provocação se instalem, aqui de forma narrativamente mais concentrada: em vez das longas-metragens de outras edições, esta proposta junta quatro curtas (que partilham alguns actores e personagens) e há duas especialmente certeiras. A primeira, "Diablo in Madrid", é um devaneio sobre a luta entre a contenção e a entrega ao prazer, partindo das tentações de um diabo exibicionista num cemitério - que acaba a dominar um anjo da guarda com a benção de "santo" Almodóvar, quase numa actualização (mais crua e titilante) dos dias da movida madrilena. A terceira, "Purple Army Fiction", consideravelmente mais agressiva mas sem perder o sentido de humor, é uma resposta à homofobia e ao policiamento de comportamentos, que inverte os códigos heteronormativos enquanto dispara tantos slogans (alguns hilariantes) como fluidos numa distopia irónica - e afirma-se como descendente de "The Raspberry Reich", de 2004. No processo, converte à causa dos soldados protagonistas o civil François Sagat, da mesma forma que outra estrela porno, Colby Keller, acaba rendido ao diabo na primeira curta ou a um jovem motorista na segunda, "Uber Menschen", provavelmente o mais próximo que LaBruce já esteve da comédia romântica. Mas essa acaba por ser uma experiência menos desbragada, tal como a última curta-metragem, "Fleapit", cujo surto de desejo numa sala de cinema parece menos idossincrático. Compilação curiosa, ainda assim...
2,5/5
"SAUVAGE", de Camille Vidal-Naquet: De tentações moralistas ao mergulho no miserabilismo ou em cenários escabrosos, o retrato de um prostituto que vive na rua sem considerar alternativas pode ser logo campo minado, sobretudo numa primeira longa-metragem. Mas um dos trunfos deste drama realista é a forma como o realizador francês respeita a natureza da personagem que acompanha, até às últimas consequências, mesmo que com sugestões de eventuais cedências pelo meio. E consegue-o com uma segurança pouco habitual tendo em conta que é a sua estreia nas longas-metragens (depois de três curtas), deixando um olhar justo sobre o dia-a-dia de Leo - muitas vezes (inevitavelmente) áspero, é certo, mas com momentos de descompressão e de cumplicidade que lhe vão dando algum alento. Elemento decisivo, a interpretação de Félix Maritaud atinge um patamar que dificilmente se adivinharia em "120 Batimentos por Minuto", do qual o actor francês foi uma da revelações. Vidal-Naquet coloca o protagonista à beira do precipício, mas também o mostra a jogar com as suas próprias regras mesmo que sinta as consequências dessa opção na pele enquanto o mundo o deixa à margem. Tal como Leo, o realizador recusa refugiar-se no cinismo, não facilitando a vida ao espectador - que se vê aqui imerso numa narrativa tão livre como a personagem. E nem o facto de a jornada lembrar a espaços as de outros jovens prostitutos no cinema (de "Não Dou Beijos", de André Techiné, a "Mysterious Skin", de Gregg Araki) compromete muito a intensidade deste realismo selvagem.
3,5/5