O escritor fantasma
Uma das melhores estreias deste Verão cinematográfico é também das mais discretas. Primeira obra da japonesa Miwa Nishikawa a chegar às salas nacionais, "A ETERNA DESCULPA" revela-se um pequeno grande filme entre o luto e a redenção enquanto apresenta uma realizadora a descobrir.
Miwa Nishikawa está longe de ser uma novata e não falta quem a aponte como um dos nomes a seguir do cinema nipónico actual, mas apesar de contar com vários filmes no currículo ainda nenhum tinha chegado ao circuito comercial português. "A ETERNA DESCULPA", o mais recente, até estreia por cá com dois anos de atraso, embora ainda venha a tempo de se juntar às maiores surpresas da temporada. E dá vontade de ir espreitar os seis que estão para trás, provas de um percurso prolífico que arrancou no princípio do milénio.
O universo do conterrâneo Hirokazu Koree-da pode ser uma boa porta de entrada, não só porque Nishikawa se iniciou no cinema como assistente de realização do autor de "Ninguém Sabe" e "O Meu Maior Desejo", mas também porque, a julgar por "A ETERNA DESCULPA", a realizadora e argumentista tem predilecção por dramas subtis e intimistas, em torno de relações familiares atribuladas e credíveis. E pelo menos no seu filme mais recente, a cineasta pode orgulhar-se de ser tão ou mais envolvente do que o mentor num dia inspirado.
O resultado até se mostra, aliás, francamente preferível a "O Terceiro Assassinato", o desapontante e incaracterístico filme de Koree-da que estreou em Portugal este ano. Em vez de se preocupar com malabarismos do argumento, Nishikawa aposta num estudo de personagens encabeçado por um escritor mediático e egocêntrico, que se vê obrigado a reconsiderar o seu lugar no mundo depois da morte da mulher num acidente.
Mas se este ponto de partida pode sugerir estar aqui mais um filme sobre a dor do luto, "A ETERNA DESCULPA" arrisca mais do que outros ao seguir um protagonista que não mendiga a simpatia do espectador. Pelo contrário: no momento em que o autocarro da sua mulher se despenhava, Sachio estava em casa com a amante. E a notícia da morte não o abala tanto como as suas entrevistas televisivas dão a entender, num contraste que dá logo conta do jogo entre pespectiva compreensiva da realizadora e o cinismo (continuamente retratado) da personagem principal.
Embora Nishikawa exponha as falhas de carácter e contradições do protagonista, nunca se coloca acima dele nem se limita a adocicar uma figura pouco empática numa história de auto-descoberta e redenção de unir os pontos. E se aos poucos o quotidiano de Sachio se vai abrindo a algum altruísmo, à medida que a tragédia o leva a conhecer uma nova família, a espessura emocional de "A ETERNA DESCULPA" não se contenta com epifanias fáceis nem perde de vista o que é, acima de tudo, um olhar complexo (às vezes até inesperadamente duro) sobre a solidão.
Ainda assim, é um olhar mais esperançoso do que pessimista, complementado por uma perspicácia e atenção ao detalhe capaz de integrar um retrato das clivagens sociais, do fosso entre a vida pública e privada ou da forma como a vida alimenta a arte (ou como a "persona" mais aberta do escritor pode ser só uma jogada oportunista, sobretudo em fase de bloqueio criativo). Torna-se legítimo que o espectador fique de pé atrás em relação às motivações do protagonista, mas torna-se igualmente difícil não aderir às cenas deste com as duas crianças que acabam por ir fazendo parte do seu dia-a-dia sem pedirem licença.
Essas sequências domésticas, as mais prosaicas, são também as mais comoventes (e/ou espirituosas) de um drama muito bem defendido por uma realizadora sempre capaz de encontrar o tom certo (o facto de adaptar aqui o seu próprio romance, homónimo, talvez ajude) e de um elenco que lhe dá vida e autenticidade logo ao primeiro impacto (com destaque para o protagonista, Masahiro Motoki, num daqueles desempenhos que decide se o filme triunfa ou falha, e para a jovem revelação Kenshin Fujita, um adolescente obrigado a crescer muito em pouco tempo). Belíssima estreia, portanto - e limitações da distribuição à parte, não há mesmo desculpa para a perder...
4/5