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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

O futuro já chegou, o passado está sempre a voltar

O regresso da ficção científica (ou nem tanto?) de "BLACK MIRROR" e dois retratos de época bem diferentes, "DAS BOOT: O SUBMARINO" e "POSE", estão entre as novidades do ano no pequeno ecrã. A primeira já acusa algum desgaste, as outras propõem sagas cujo arranque vale a pena ter em vista.

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"BLACK MIRROR" (T5), Netflix: Depois do futuro, o presente? Ao contrário das temporadas anteriores, boa parte dos novos episódios da série de Charlie Brooker e Annabel Jones poderia decorrer nos dias de hoje, tendo em conta os cenários e ideias menos extremos que estão no centro da acção dos três capítulos da quinta temporada. Mas infelizmente só o primeiro, "Striking Vipers", é que revela uma consistência ao nível do que seria legítimo esperar, ao dar conta do desgaste de uma relação à medida que um bromance se cruza com as possibilidades da realidade virtual (a propor a desconstrução de alguns paradigmas sexuais pelo caminho), drama centrado num óptimo Anthony Mackie.

Owen Harris, o realizador desse episódio, sai-se bem a desenvolver um tom mais caloroso, que também domina os outros capítulos da nova fornada, mas a frieza (cínica e às vezes niilista) presente em alguns dos pontos altos da série parece fazer falta a "Smithereens", panfleto moralista sobre as redes sociais feito a partir de um thriller de resgate estereotipado (apesar do cenário curioso de aldeia global), e a "Rachel, Jack and Ashley Too", que arranca como um drama promissor sobre a solidão da adolescência antes de cair numa sátira tosca e caricatural, com pouco a acrescentar a narrativas sobre o preço da fama ou às armadilhas da indústria do entretenimento (aqui com editoras mais mercenárias do que nunca).

Fica a graça de ver e ouvir Miley Cyrus a dar novo embalo a canções dos Nine Inch Nails, mas não compensa a quase ausência daquela inquietação - no seu melhor, assustadora e desnorteante - que "Black Mirror" conseguiu despertar como poucas séries ou filmes dos últimos anos até à quarta temporada.

2,5/5

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"DAS BOOT: O SUBMARINO" (T1), AMC (e disponível na íntegra na aplicação do MEO): Não é preciso ter visto o filme do alemão Wolfgang Petersen para mergulhar nesta sequela, agora no pequeno ecrã, também ela inspirada no livro homónimo do conterrâneo Lothar-Günther Buchheim (e no sucessor, "Die Festung").

Ao contrário de outras sagas, a dependência do original é mínima e o ponto de partida é suficientemente distinto para que esta aventura possa fazer sentido isoladamente. E não só faz como se afasta da premissa inicial, que concentrava toda a acção num submarino germânico. Parte da narrativa continua a seguir por aí, nove meses depois da anterior e ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Mas desta vez divide o protagonismo com o relato da resistência numa localidade francesa, a partir do dia-a-dia de uma funcionária do regime nazi numa encruzilhada moral.

Vicky Krieps, que já tinha sido a maior surpresa de "Linha Fantasma", de Paul Thomas Anderson, volta a ser um dos trunfos ao encarnar essa mulher estóica e circunspecta, mas não faltam outras presenças fortes num elenco internacional, de Tom Wlaschiha (mais carismático aqui do que como Jaqen H'ghar em "A Guerra dos Tronos") a Vincent Kartheiser (Pete Campbell em "Mad Men"). Sem o maniqueísmo de outros dramas bélicos da mesma época, estes oito episódios mantêm a tensão tanto nas cenas claustrofóbicas em alto mar como na comunidade costeira, dominada por um clima de desconfiança de cortar à faca.

A câmara do austríaco Andreas Prochaska mostra nervo no desenho de ambientes do submarino sem descurar a individualidade dos soldados e restantes personagens, e o argumento só falha a nota ao forçar uma relação amorosa a meio da temporada. Nada que não se perdoe já no final, a deixar a porta aberta para uma segunda época, entretanto confirmada - e a aguardar com expectativa.

3,5/5

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"POSE" (T1), Netflix: Depois de "The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story" ter ficado aquém do potencial, apesar de alguns episódios interessantes, a nova aposta de Ryan Murphy (ao lado de Brad Falchuk e Steven Canals) será das mais aconselháveis e equilibradas do criador de "Nip/Tuck", "Glee" ou "American Horror Story".

A produção do FX foi apresentada como a série com mais transexuais de sempre no elenco, mas não vale só pelas intenções de uma representatividade diminuta até aqui, no pequeno e no grande ecrã. Este é mesmo um retrato credível e envolvente de uma subcultura nova-iorquina de meados dos anos 80: a do voguing, nascida de noites com desfiles de drag queens, comunidade ostracizada até entre muitos círculos da "família" LGBTQ (como a série não deixa de apontar, em cenas-chave com uma personagem transexual num bar gay, sem cair na vitimização).

Mantendo um carinho óbvio pelos "misfits" que vai acompanhando e aglomerando num pequeno apartamento, o resultado é uma ode à diferença a partir de um balanço muito bem gerido entre drama e comédia, que se esquiva ao miserabilismo (sem ignorar os cenários mais trágicos do flagelo da Sida) e a epifanias (o olhar é esperançoso mas dá conta do conflito interior e do estatuto marginal destas figuras).

Cedendo o protagonismo a um núcleo de actores desconhecidos do grande público, Evan Peters, Kate Mara e James Van Der Beek dão rosto à América cisgénero, que Murphy não resiste a colocar nos bastidores de um então menos famigerado Donald Trump. Mas "Pose" está pouco interessada em provocações fáceis: basta ver a dignidade rara com que aborda um triângulo amoroso entre essas duas realidades, evitando deitar abaixo qualquer vértice para elevar outro. Essa empatia torna mais estranha (e desapontante) a necessidade de encontrar vilãs de serviço na recta final, mas ainda assim não trava a curiosidade de acompanhar estas personagens na segunda e terceira temporadas, já asseguradas.

3,5/5