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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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O insustentável peso do trabalho

E se a vida pessoal fosse completamente separada da profissional? "SEVERANCE", a nova série da Apple TV+, tenta dar a resposta numa distopia algures entre "The Office" e "Black Mirror", quase inteiramente realizada por Ben Stiller.

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Quem tem problemas em desligar-se do trabalho, mesmo aos fins de semana, folgas ou férias, talvez considerasse aderir a uma ideia que "SEVERANCE" torna possível.

No universo da série criada por Dan Erickson (na sua estreia como showrunner e argumentista) e dirigida por Ben Stiller ("Jovens em Delírio", "Zoolander") e Aoife McArdle ("Kissing Candice"), picar o ponto na hora da saída é literalmente um arrumar de memórias do dia de trabalho, uma vez que um dispositivo cerebral permite que não haja qualquer vestígio da rotina do escritório na vida pessoal dos empregados. E essa lógica funciona nos dois sentidos, já que durante o horário laboral os trabalhadores também não sabem nada da sua vida lá de fora (se são comprometidos, se têm filhos ou outros familiares, em que cidade vivem, quais os seus hobbies...).

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Mas aderir a esse modelo, embora seja aparentemente voluntário, também se pode revelar problemático a vários níveis, como a série começa por sugerir logo aos primeiros minutos com uma sequência de terror, ou pelo menos de um considerável desnorte psicológico no escritório. Momento que dá as boas-vindas a uma nova trabalhadora da empresa que emprega o protagonista, interpretado por Adam Scott, deixa o espectador tão intrigado como a recém-chegada e é uma forma habilidosa que começar a desenhar os contornos deste mundo clínico e asséptico, impessoal e enigmático.

Ensaio sobre o desconforto, ansiedade e claustrofobia laboral, "SEVERANCE" não dispensa o humor seco que ajudou "The Office" a ficar como referência no olhar sobre esse quotidiano, embora aqui seja servido em doses bem mais comedidas. Já os contornos de thriller e ficção científica remetem para as visões distópicas de "Black Mirror", até porque a tecnologia tem aqui um papel decisivo, e também não é difícil encontrar aqui marcas de outras sagas futuristas, de "Matrix" a "Pago Para Esquecer", ou de algumas experiências desorientadoras de Charlie Kaufman ou Stanley Kubrick.

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Ainda assim, o parente mais próximo da série talvez seja "A Vida Secreta de Walter Mitty", o curioso filme de Ben Stiller no qual o protagonista tentava fugir de um mundo padronizado, mecânico e individualista. Mas se essa era uma comédia onde o desencanto dava lugar ao escapismo, a jornada de "SEVERANCE" parece mais incerta, embora não deixe dúvidas sobre o talento do actor atrás das câmaras. Stiller dirige seis dos nove episódios, incluindo os primeiros três, marcados por uma linguagem formalista, geométrica, cerebral e imersiva, à medida da história que conta com uma precisão de relojoeiro.

Felizmente, esse apuro visual não limita esta história a um exercício de estilo, pelo menos no arranque: apesar do ritmo lento e da atmosfera dormente, há aqui personagens vivas e dinâmicas com potencial dramático, da dualidade da vida do protagonista (a primeira que a série acompanha, mas que não deverá ser a última) ao processo de adaptação da nova colega, interpretada por Britt Lower.

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Um desaparecimento misterioso também está entre os elementos-chave de uma trama defendida por um elenco sonante e recomendável: além de Scott e Lower, ambos a comporem figuras de corpo inteiro e não meras peças de um jogo engenhoso, há aqui gente como Christopher Walken, Patricia Arquette e John Turturro, mais bons motivos para continuar a acompanhar a série depois de dois primeiros capítulos muito promissores. Se o que se segue mantiver este padrão, talvez a memória televisiva de 2022 venha a passar por aqui...

Os dois primeiros episódios de "SEVERANCE" estão disponíveis na Apple TV+ desde 18 de Fevereiro. A plataforma de streaming estreia novos capítulos todas as sextas-feiras.