O papel principal é dela (e só dela)
"A VERDADE" é o primeiro filme de Hirokazu Koreeda fora de portas e tranquiliza quem temia que o cineasta japonês se aburguesasse em França, mesmo que este drama familiar tão sóbrio como caloroso seja menos memorável do que a interpretação de Catherine Deneuve.
Depois de "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões" (2018), obra que lhe reforçou a aprovação e visibilidade internacional, um dos realizadores-chave do cinema japonês das últimas décadas arrisca o primeiro passo criativo noutro país - e também noutro idioma. França, onde ganhou a Palma de Ouro em Cannes, há dois anos, é agora o cenário de um filme que, apesar da mudança de contexto geográfico e cultural, retoma territórios habituais da sua obra: os das histórias familiares, instigadoras de alguns dos seus títulos mais elogiados (do antecessor supracitado ao marcante "Ninguém Sabe", que revelou o seu nome a muitos espectadores fora de portas no início do milénio).
"A VERDADE" não desonra os pergaminhos de um autor conhecido pelo olhar empático e complexo sobre os relacionamentos humanos, e em especial as dinâmicas entre pais e filhos. Ou neste caso, entre mães e filhas, a partir da reaproximação de duas mulheres vividas por Catherine Deneuve e Juliette Binoche, ambas dirigidas pelo japonês pela primeira vez. Ethan Hawke acompanha-as, mas Koreeda nunca tenta disfarçar que este é um filme assente nelas e nos caminhos que as movem entre a cumplicidade e a crispação, aqui sempre de forma mais ou menos velada - ou não fosse esta uma história que desenterra ressentimentos e revelações de um passado turvo.
Deneuve encarna uma actriz tão respeitada e icónica como caprichosa e emocionalmente distante, e qualquer semelhança com a realidade não será pura coincidência num drama que também sabe recorrer ao humor, muitas vezes para sublinhar um argumento auto-consciente que até aposta no modelo de filme-dentro-do-filme (a partir de uma obra de ficção científica vincada pela relação mãe-filha na qual a protagonista participa). Mas o jogo de espelhos vai mais longe através do livro de memórias, intitulado "A Verdade", que a estrela veterana se prepara para lançar. E a ocasião motiva, de resto, a visita da filha, do genro e da neta, que vivem nos EUA.
Num reencontro que dura poucos dias, Koreeda mergulha em décadas de decisões, rivalidades, segredos e ausências, revisitando a vida pessoal e profissional da personagem de Deneuve e as marcas que o braço de ferro entre ambas deixaram nos que estavam à sua volta. As duas actrizes mostram-se à altura da viagem emocional, embora "A VERDADE" acabe por se revelar sobretudo uma ode à mais velha, que tem aqui um dos papéis mais fortes em muitos anos e responde com a entrega que se esperaria. E nem o facto de encarnar uma versão, pelo menos em parte, dos traços associados à sua persona pública demove o carisma nem as camadas de uma mulher inteira, que se sobrepõe ao estereótipo de diva inacessível.
Binoche, não tendo a mesma atenção do argumento e da câmara, é ainda assim determinante para alguns dos melhores momentos do filme: as cenas entre as duas, das mais espirituosas às conflituosas, que provam que Koreeda ainda tem muito a dizer sobre as particularidades das relações familiares. E sabe como o dizer, mais uma vez com inteligência emocional e sem fazer juízos, por muito que "A VERDADE" não tenha a força dramática de alguns antecessores - ocasionalmente, o tom sóbrio confunde-se com o morno e a banda sonora agridoce é um facilitismo que chega a sugerir um realizador acomodado.
Além de dirigir duas grandes senhoras do cinema francês, Koreeda mantém-se um director de actores confiável ao escolher Ethan Hawke, que dá o corpo às balas disparadas pela personagem da sogra (as que não poupam a televisão nem as estrelas americanas são das mais divertidas), e Clémentine Grenier, a mais jovem mulher desta família e também o mais recente exemplo de um talento infantil revelado pelo japonês. Deneuve pode ser quem brilha mais, mas "A VERDADE" ainda vai tendo outros encantos.
3/5