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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

O realismo britânico está bem e recomenda-se

A tradição realista britânica ainda é território fértil e tem em "DEPOIS DO AMOR" e "SEMPRE PERTO DE TI" dois representantes meritórios: o primeiro destaca-se entre os filmes em cartaz, o segundo teve direito a antestreia na Festa do Cinema Italiano.

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"DEPOIS DO AMOR", de Aleem Khan: Seguríssima estreia nas longas-metragens de um realizador que já contava com algumas curtas aplaudidas, este drama de câmara vem colocar o anglo-paquistanês na lista de nomes da nova geração britânica a acompanhar com atenção.

O que acontece quando uma mulher descobre que o marido, recentemente falecido, mantinha outro relacionamento (aliás, outra família)? Se a premissa soa telenovelesca, Khan vai tecendo uma narrativa paciente e quase sempre implosiva logo desde a notável primeira cena (um grande exemplo da lógica menos é mais, a partir de um recurso certeiro ao plano fixo).

Joanna Scanlan, premiada com um BAFTA pelo seu desempenho, tem sido habitualmente associada à comédia, muitas vezes em papéis secundários, mas revela-se uma actriz dramática de corpo inteiro - e a forma como a câmara capta o seu corpo está longe de ser um pormenor. "DEPOIS DO AMOR" dá tempo aos olhares, gestos e silêncios enquanto doseia ingredientes que tanto alimentam um suspense ancorado em segredos e mentiras como permitem explorar os dilemas e contradições das personagens sem nunca as julgar.

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Alexander Dynan, o director de fotografia (colaborador habitual de Paul Schrader nos últimos tempos), ajuda a dar uma energia visual singular às viagens recorrentes entre Dover (Inglaterra) e Calais (França), através do Canal da Mancha, e também entre a comunidade paquistanesa britânica e a classe média francesa, num relato que vai diluindo fronteiras e ilusões, das pessoais às familiares e culturais.

Khan também mostra querer sair do formato realista mais conservador ao deixar pistas de thriller psicológico nas falhas que ameaçam montanhas ou tectos quando a protagonista está à beira de um ataque de nervos, entre outros acessos esteticamente inventivos e tematicamente oportunos. E embora não se desvie de uma ou outra limitação de uma primeira obra pelo caminho - algumas cenas desafiam a plausibilidade, sobretudo num último acto que rompe com a contenção mantida até aí -, esta é uma estreia mais do que recomendável (e muitas vezes admirável).

3,5/5

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"SEMPRE PERTO DE TI", de Uberto Pasolini: Uma das antestreias e certamente um dos melhores filmes da Festa do Cinema Italiano, a decorrer este mês, esta coprodução britânica, italiana e romena é uma pérola capaz de comover e surpreender sem nunca resvalar para a manipulação emocional, o miserabilismo crónico ou o relato inspirador de triunfo sobre a adversidade. E essas eram armadilhas bem tentadoras numa história que acompanha um pai com uma doença terminal (James Norton, brilhante) que procura, com a ajuda dos serviços sociais irlandeses, uma família que acolha o filho de quatro anos (Daniel Lamont, uma das crianças mais autênticas dos ecrãs em muito tempo).

O facto de o protagonista ter um emprego precário, de a mãe ter abandonado o filho e de não haver outros familiares por perto atira ainda mais este drama ambientado em Belfast para uma situação-limite - e, de certa, forma, faz dele uma espécie de negativo de "Listen", de Ana Rocha de Sousa, no qual um casal empobrecido fazia tudo para não se afastar dos filhos. Mas cada cena, cada plano e cada interação revelam um humanismo e integridade difíceis de equilibrar, embora Pasolini mantenha essa harmonia e aparente simplicidade sem esforço visível nesta sua terceira longa-metragem (sucessora de "Machan", de 2008, e "Still Life", de 2013).

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Se o apelido do realizador sugere uma certa herança, ela de facto confirma-se: o italiano não só é primo em segundo grau de Pier Paolo Pasolini como sobrinho de Luchino Visconti. E não envergonha nada os pergaminhos desses antecessores icónicos, mesmo que esteja mais alinhado com a escola do realismo britânico do que com os seus ensinamentos: "SEMPRE PERTO DE TI" é um belíssimo e simultaneamente angustiante testemunho sobre a infância, a família e a inevitabilidade da morte. A subtileza que Pasolini demonstra ao retratar a forma como o filho entende (e aceita?) a condição do pai é daqueles pequenos milagres de dramaturgia que a direcção de actores acompanha (e até eleva) e que a sobriedade da partitura instrumental de Andrew McAllister nunca trai. Agora é esperar que a estreia comercial por cá, prevista para 19 de Maio, tenha o abraço do público que merece...

4/5