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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

O sonho de Cassandra

Ancorada na estreia (muito convincente) da cantora brasileira Liniker na representação, "MANHÃS DE SETEMBRO" também se destaca pela representatividade ao dar protagonismo a uma mulher negra, transexual e pobre. Mas não se fica pelas boas intenções: está aqui uma das grandes (minis)séries do ano, já disponível na íntegra no Amazon Prime Video.

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Cassandra conseguiu finalmente ter um apartamento próprio numa altura em que também encontrou alguma estabilidade profissional e emocional em São Paulo: trabalha num serviço de entregas e canta em algumas noites num bar LGBTQI+, mantém um grupo de amigos que se tornou a sua nova família (depois de ter deixado de responder no masculino, como Clóvis) e o relacionamento com o seu companheiro parece cada vez mais sério. Só que quando tudo parecia estar a entrar nos eixos, surge uma novidade que dificilmente imaginava: Leide, com quem tinha tido um breve envolvimento sexual há muitos anos, ainda antes da fase de transição para mulher, bate-lhe à porta com um rapaz, Gersinho, que diz ser seu filho.

Ao partir desta premissa, "MANHÃS DE SETEMBRO" podia encaminhar-se para um dramalhão telenovelesco (embora progressista q.b.), mas a minissérie de cinco episódios criada por Josefina Trotta ("Amigo de Aluguel"), Alice Marcone ("Born to Fashion") e Marcelo Montenegro ("Lili, a Ex") escapa tanto a essas armadilhas como às do ensaio sociológico que faz das personagens símbolos da sua condição social, etnia, identidade de género ou orientação sexual. Pelo contrário, o que mais surpreende e cativa na nova aposta brasileira do Amazon Prime Video é o quão singular é este retrato, desde a protagonista e as relações que estabelece com os que lhe estão próximos (incluindo uma "participação especial" de Vanusa, cantora que a inspira e que homenageia em palco) a uma São Paulo suburbana e pouco vista na ficção, a milhas do postal turístico mas também da costela miserabilista de algum realismo social.

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Tão determinada como insolente, às vezes até irascível, Cassandra afirma-se como uma figura desafiante para o espectador, ainda que os argumentistas se encarreguem de permitir que este a compreenda enquanto procura encontrar o seu lugar no mundo. E é um lugar que continua a ser questionado por muitos, de certa forma até pelo filho, mas "MANHÃS DE SETEMBRO" consegue dar a ver essa tensão quotidiana sem ter mão pesada (focando-se mais nas microagressões, muitas até sem intenção por parte de quem as faz, do que numa narrativa de denúncia exaltada).

Se é verdade que a direcção do arco familiar de Cassandra acaba por ter alguma previsibilidade, ou não fosse esta uma história declaradamente humanista, a forma como se resolve (sem impor um final definitivo) deixa uma grande prova de maturidade em várias frentes, da escrita à realização (com uma São Paulo fria e obscura a tornar-se personagem, sobretudo nas cenas nocturnas), do elenco no ponto a um tom justo, nem delicodoce nem austero.

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Uma ficção menor consagraria a protagonista como anti-heroína edificante e remeteria Leide ao lugar de mulher cis heterossexual e preconceituosa, com um maniqueísmo às vezes a toldar a visão de outras histórias LGBTQI+ (basta ver como terminou a também recente "It's a Sin", da HBO). "MANHÃS DE SETEMBRO" prefere reconhecer personagens de corpo inteiro e as suas particularidades, as melhores e as piores, sem impor juízos morais ao espectador. E é notável na atenção que dá a todas, das principais às secundárias, em especial quando se entrega ao dia a dia de várias tipologias familiares sem as hierarquizar.

Apesar de o streaming ter permitido maior liberdade nos formatos e duração das temporadas e de cada episódio das séries, aqui bastam cinco capítulos de 30 minutos cada para levar este drama a bom porto, com uma concisão que também merece elogios (sem que fique a ideia de se ter perdido alguma coisa no caminho). E depois há o elenco, a vincar a estreia na representação da voz de Liniker e os Caramelows, que já tinha feito breves participações como actriz no pequeno e grande ecrã, embora a fazer dela própria. Ninguém diria que é um primeiro passo, pela forma como traduz a dureza, a vulnerabilidade e o desajuste de Cassandra, surgindo aqui ao lado de outras mulheres trans - caso de Linn da Quebrada, também vinda da música mas já com alguma experiência interpretativa no currículo (participou, por exemplo, no recomendável "Corpo Elétrico").

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Karine Teles, na pele de Leide, deixa mais um desempenho conseguido a juntar aos papéis elogiados de "Que Horas Ela Volta?", "Benzinho" ou "Bacurau", aqui enquanto mãe tão dedicada como desnorteada. Já Gustavo Coelho, no seu primeiro trabalho, é uma revelação a seguir depois de encarnar Gersinho, uma criança sensível que tem de conciliar (e compreender) dois mundos.

A dupla de realizadores, Luís Pinheiro ("Samantha!") e Dainara Toffoli ("A5 Five"), e o director de fotografia Lito Mendes da Rocha ("Serra Pelada") asseguram que o olhar urbano seja visualmente coerente e ajudam muito a fazer desta aposta da O2 Filmes, produtora de Fernando Meirelles ("Cidade de Deus"), um dos melhores exemplos da ficção televisiva brasileira recente, a juntar a "Pico da Neblina" (HBO Portugal), "Boca a Boca" ou "Cidade Invisível" (ambas disponíveis na Netflix). E também uma das melhores (minis)séries de 2021, independentemente de origens geográficas...

4/5