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Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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Os miúdos (não) estão bem

É uma das surpresas deste Verão cinematográfico: "SWEET THING - INFÂNCIA À DERIVA", o mais recente filme de Alexandre Rockwell, cineasta pouco visto nas salas nacionais, junta realismo e fábula num drama que faz querer espreitar os anteriores do norte-americano.

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Há três décadas, Alexandre Rockwell foi um dos realizadores que assinaram uma curta de "4 Quartos" (1995), o filme de culto que se tornou mais conhecido por também ter sido dirigido por Quentin Tarantino e Robert Rodriguez - Allison Anders completava o quarteto de cúmplices atrás das câmaras. Se na altura era apontado como uma das revelações do cinema independente, desde então o norte-americano tem sido seguido de perto por um círculo bem mais restrito do que aquele que chegou a prometer em inícios dos anos 90. O que não quer dizer que a sua obra não tenha sido interessante, pelo menos a julgar pelo seu último drama.

Primeira longa-metragem desde "Little Feet" (2013), "SWEET THING - INFÂNCIA À DERIVA" volta a ter como protagonistas os filhos do cineasta, Lana e Nico Rockwell, desde logo dois grandes motivos para não deixar passar o filme - e responsáveis por boa parte do seu capital de simpatia. Tanto ela como ele são sempre credíveis na pele de uma adolescente e de uma criança, respectivamente, que lidam como podem com um pai generoso mas rendido ao alcoolismo (Will Patton, tão desfeito como magnético) e uma mãe que parece ter trocado a família por uma vida com um outro homem, e não necessariamente para melhor (Karyn Parsons, mulher do realizador, convincente noutra personagem desamparada).

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Como viver num lar que se desmorona de dia para dia, sem uma luz ao fundo do túnel? Para a jovem dupla, o escapismo surge como a resposta possível, seja através de aparições repentinas de uma Billie Holliday em modo maternal e protector ou do tom de fábula com que a protagonista ajuda a manter alguma inocência no quotidiano do irmão mais novo.

Rockwell é muito bom a desenhar a visão do mundo do duo, com a sensação de deslumbramento a impulsionar uma fuga para a frente que terá de se defrontar com um beco sem saída. Até lá, "SWEET THING - INFÂNCIA À DERIVA" vale-se de um olhar seco sobre o abuso físico e psicológico filmado em 16mm e com fotografia granulada a preto e branco (apesar de algumas intromissões oportunas de cor). O recurso à câmara à mão, outra opção formal dominante, tem ajudado a suscitar comparações à estética de Godard, Truffaut ou Cassavetes, embora a escola de algum cinema indie norte-americano de finais dos anos 80 e inícios dos 90 também tenha aqui descendência - o que não é de estranhar, já que Rockwell fez parte dela.

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Se o resultado pode parecer anacrónico e o baixo orçamento é visível, isso será mais feitio do que defeito quando este mergulho na esfera íntima de uma família marginalizada oferece um estudo de personagens singular e comovente (sem forçar a nota dramática).

A primeira metade de "SWEET THING - INFÂNCIA À DERIVA" é particularmente forte, quando se concentra numa incerteza doméstica na qual tanto cabe a ternura como o caos - e deixa um corte de cabelo improvisado e de antologia, talvez o pico emocional do filme. Na segunda, o realizador abraça a tradição do road movie - com outro jovem companheiro de aventuras a juntar-se aos dois irmãos - mas o retrato perde alguma intensidade, entre a redundância de sequências lúdicas e um argumento a ameaçar tornar-se tão desnorteado como os protagonistas. Mas acaba por encontrar o rumo perto do final, num equilíbrio agridoce entre angústia e esperança, desenlace justo para um regresso que será para muitos uma revelação - e que deixa curiosidade tanto quanto ao futuro como ao passado de Rockwell.

3/5