Os ricos e os pobres
São dos filmes mais falados dos últimos tempos, por motivos muito diferentes, mas todos acabam por ter a luta de classes entre os pontos-chave: "JOKER", "OUSADAS E GOLPISTAS" e "PARASITAS", três estreias que marcam a recta final de 2019.
"JOKER", de Todd Phillips: Há que aplaudir a audácia de um filme que tenta fugir à fórmula de boa parte das aventuras cinematográficas da Marvel e da DC. Esta origem de um dos maiores vilões do universo dos super-heróis não é (e mostra que não quer ser) a dose de mais do mesmo da temporada. Só que daí a ser um grande filme, ou mesmo um filme especialmente conseguido, ainda vai uma certa distância. E por muito que o realizador de "A Ressaca" aponte agora a Nova Hollywood e, em especial, obras de referência de Martin Scorsese como inspirações (inesperadas, admita-se, tendo em conta o seu currículo), a abordagem acaba por ser mais adolescente do que adulta, ainda que essa caução cinéfila seja aliciante para alguns - e até inclua a "benção" de Robert De Niro, cuja participação reforça os ecos de "Taxi Driver" ou "O Rei da Comédia" neste mergulho na solidão e indiferença urbanas.
Sim, é difícil não reconhecer a entrega de Joaquin Phoenix, embora a câmara fique tão deslumbrada com o seu corpo e esgares que se esquece de olhar com atenção para os secundários, peões ao serviço de uma retórica sisuda, repetitiva e sem grandes subtilezas - veja-se o discurso do protagonista numa das últimas cenas, a explicar palavra por palavra o que as quase duas horas anteriores já tinham salientado. No final, ao extremar tanto o olhar sobre as tensões sociais a partir de uma Gotham City atípica (mais próxima da Nova Iorque suja e agreste de thrillers dos anos 70), marcando um fosso intransponível entre ricos e pobres, "JOKER" não escapa ao maniqueísmo das histórias de super-heróis das quais pretende distanciar-se.
A intriga com mistério telenovelesco centrada na família Wayne também não ajuda, nem uma reviravolta que Phillips não resiste a desvendar com uma recapituação para o espectador menos atento, gestos que vão diluindo a perspicácia sugerida noutras sequências (como algumas das que denunciam o impacto da doença mental num homem com um quotidiano já de si conturbado). E depois também é muito difícil imaginar que este Arthur Penn vai algum dia tornar-se numa figura impenetrável, caótica, arrepiante e calculista como a que Heath Ledger encarnou de forma tão singular. Apesar do arrojo em fugir à linha de montagem hollywoodesca, este Joker perturba muito pouco...
2,5/5
"OUSADAS E GOLPISTAS", de Lorene Scafaria: Óscar para Jennifer Lopez? Ou nomeação, pelo menos? Essa expectativa tem alimentado as atenções em torno deste curioso filme de golpe baseado num caso real, mas até é Constance Wu quem mais sobressai ao longo do mergulho no submundo nova-iorquino. Não que J-Lo esteja mal, sobretudo porque assume aqui uma personagem mais interessante do que aquelas a que nos tem habituado, na pele de uma stripper que prepara um esquema para seduzir, drogar e roubar corretores de Wall Street.
Lopez, que também assume a função de produtora executiva, tem ainda a seu favor a química que nasce da sua relação com a co-protagonista, na medida certa entre a cumplicidade e a disputa, e a desenvoltura de uma realizadora que recusa olhar para estas mulheres apenas enquanto manipuladoras ou vítimas do sistema.
Filme surgido da ressaca da crise financeira de 2008, "Ousadas e Golpistas" é, felizmente, mais conciso do que "O Lobo de Wall Street" e menos esquemático do que "A Queda de Wall Street" (cujo realizador, Adam McKay, está aqui ao lado de Lopez ou de Will Ferrell na produção executiva). E também sabe fugir ao empoderamento feminino feito com mão pesada que tornou os também recentes "Viúvas" e "The Kitchen - Rainhas do Crime" em experiências frustrantes.
Através do percurso de Wu, cuja personagem conduz esta narrativa inspirada num artigo da New York Magazine, Scafaria molda um relato astuto e envolvente, auxiliado por uma montagem enérgica mas não gratuita e uma das bandas sonoras mais certeiras dos últimos tempos (de Janet Jackson a Fiona Apple, de Britney Spears aos Soulwax).
É verdade que o argumento nunca chega a explorar as outras mulheres do gangue como a dupla protagonista, que as muito faladas presenças de Cardi B e Lizzo são pouco mais do que cameos e que uma das últimas aliadas do golpe, de tão destrambelhada, torna a acção inverosímil em algumas sequências. Mas não deixa de estar aqui uma boa surpresa, e com mais rasgo do que muita produção mainstream norte-americana dos últimos meses.
3/5
"PARASITAS", de Bong Joon-ho: O que é admirável no novo filme do cineasta sul-coreano nem é tanto a mistura de géneros, aliás já habitual na obra do autor de "Expresso do Amanhã" ou "The Host - A Criatura", mas a mestria com que é desenvolvida numa das suas obras mais memoráveis. E também uma das melhores do ano, ao partir de duas famílias de Seul com origens sociais bem diferentes que o destino (e alguma chico-espertice do clã mais humilde) se encarregará de entrecruzar.
A viagem entre a comédia negra e o thriller, com desvios ocasionais pelo terror (sangrento q.b., fica o aviso), segue num sentido a milhas da contenção de "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões", de Hirokazu Koreeda, outro olhar recente sobre uma família asiática empobrecida que fugia aos caminhos mais óbvios do realismo social. Ao longo de mais de duas horas, Bong Joon-ho não perde a mão e consegue ir surpreendendo até o espectador mais habituado às reviravoltas que os seus filmes costumam servir.
O resultado é tão lúdico como angustiante, entretenimento de topo e capaz de agradar a vários públicos sem perder de vista a capacidade de observação sobre o fosso económico da capital da Coreia do Sul - e não muito diferente do de outras metrópoles. "PARASITAS" pode até nem dizer nada de novo, mas têm surgido poucos filmes tão engenhosos e contundentes, que revelem um cineasta tão hábil na manipulação do espectador, recompensando-o com uma experiência que vai muito além de um exercício de estilo.
Abrilhantando por um elenco sem falhas e uma direcção artística à altura (a casa na qual decorre a maior parte da acção é todo um novo mundo por explorar), ainda consegue dar tempo e espaço e todas as personagens (e são muitas), motores de um conflito mais ambivalente do que aquele que o arranque sugere. Uma das estreias imperdíveis de 2019, portanto, e das mais desconcertantes.
4/5