Os super-heróis já não são o que eram
Não têm faltado adaptações de sagas de super-heróis para cinema e televisão, e muitas acusam algum esgotamento mesmo quando continuam a ter sequelas. Mas ainda há excepções: "O VIZINHO" e "THE BOYS", por exemplo, trazem novas possibilidades ao género nos serviços de streaming.
"O VIZINHO" (T1), Netflix: Ao contrário de outras séries espanholas recentes que se popularizaram através do streaming (como "La Casa de Papel" ou "Elite"), esta adaptação da BD homónima de Santiago García e Pepo Pérez tem passado praticamente despercebida. E é pena, porque mesmo não sendo uma série obrigatória, consegue manter-se refrescante ao partir de uma premissa já bem conhecida - a de um homem normal que ganha superpoderes sem estar à espera.
No caso, o protagonista, Javier (AKA Titã), tem muito pouco de heróico: é um trintão preguiçoso e egoísta, que está mais preocupado em ter uma vida cómoda e em reconquistar a ex-namorada do que em salvar o mundo. Essa faceta leva a que "O VIZINHO" seja uma saga com pouquíssimas cenas de acção e ainda menos missões, já que os showrunners Carlos de Pando e Sara Antuña, ao lado do realizador Nacho Vigalondo (conhecido por filmes de culto como "Os Cronocrimes" ou "Colossal"), optam por um olhar cómico que tanto deixa uma sátira sobre histórias de iniciação de super-heróis como cruza a rotina do vigilante com a do dia-a-dia de um bairro dos subúrbios de Madrid.
Entre um núcleo de personagens carismáticas (do proto-sidekick José Ramón à desbocada vizinha Julia), um elenco à medida (conduzido pela indolência de Quim Gutiérrez) e alfinetadas ao jornalismo actual ou às redes sociais, a primeira temporada oferece dez episódios de cerca de 30 minutos cada, sempre despretensiosos e às vezes hilariantes. Felizmente, a segunda já está confirmada e, a julgar pelo remate da inicial, deverá trazer mudanças ao status quo.
3/5
"THE BOYS" (T1), Amazon Prime: Embora não tenha sido tão aplaudida como a versão televisiva de "Watchmen", esta adaptação de outra BD de culto (criada por Garth Ennis e Darick Robertson) é mais uma grande alternativa à linha de montagem da Marvel e da DC no pequeno ou grande ecrã. Também será, muito provavelmente, a melhor série desenvolvida por Eric Kripke ("Supernatural", "Revolution", "Timeless"), pela forma como retrata um mundo entregue à vigilância de uma espécie de Liga de Justiça de moral muito questionável.
A equipa dos Sete traz versões politicamente incorrectas de ícones como a Mulher-Maravilha, Flash ou Aquaman (aqui The Deep, a oferecer cenas bizarras de alívio cómico), mas a mais memorável fica a cargo de Homelander, um Super-Homem inquietante defendido com garra por Antony "Banshee" Starr. Com outra interpretação superlativa, Elisabeth Shue encarna uma figura igualmente turva, sem precisar de superpoderes para se revelar intimidante. E apesar de ser ácida e corrosiva q.b., esta saga também tem um coração a bater no relacionamento entre uma jovem super-heroína e um dos rapazes do título que procura ajustar contas com o sistema, subenredo com algum idealismo a triunfar no meio do cinismo, violência e mal estar social.
A comparação com "Watchmen" talvez não a favoreça: este argumento, ainda que mais ambicioso do que o de muitas aventuras do género, não terá tantas camadas de leitura, e também não há aqui episódios que se destaquem individualmente (nem uma realização como a que ajudou a tornar geniais alguns capítulos da série da HBO). Mas não deixa de ser uma proposta empolgante, arriscada e recomendável, sobretudo para quem diz já não encontrar surpresas nestes meandros.
3,5/5