Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Pais & filhos (italianos, mas de apelo universal)

Depois de ter arrancado em Lisboa no início do mês, a FESTA DO CINEMA ITALIANO passa agora por Almada, Leiria e Tomar. Mas há pelo menos dois filmes estreados na capital que mereciam mais salas.

Magari.jpg

"MAGARI", de Ginevra Elkann: Estreia nas longas-metragens de uma realizadora que tinha assinado apenas uma curta, há mais de quinze anos, e que se tem destacado sobretudo enquanto produtora (de títulos como "Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro"), esta comédia dramática parcialmente auto-biográfica é uma prova surpreendente e apaixonante de sensibilidade aliada a um sentido de observação aguçado.

Crónica das férias de Natal de três irmãos (entre os 8 e os 14 anos) que partem de Paris, onde vivem com a mãe, para uma temporada italiana com o pai e a sua nova companheira, "MAGARI" é um belíssimo olhar sobre o crescimento, a (i)maturidade e dinâmicas familiares (dis)funcionais ancorado num elenco em estado de graça e com personagens à altura.

Alba Rohrwacher e Riccardo Scamarcio encarnam os dois adultos protagonistas, com interpretações que mostram porque é que são dos melhores actores italianos da sua geração (curiosamente também contracenam no novo filme de Nanni Moretti, o menos estimulante "Três Andares", em exibição por cá), mas os três miúdos não lhes ficam atrás (Oro De Commarque, Ettore Giustiniani e Milo Roussel, nomes a acompanhar), e sem esse equilíbrio este olhar sobre a memória ou a nostalgia, ambientado em inícios dos anos 90, não seria tão cativante.

Ginevra Elkann sai-se especialmente bem quando contrasta as visões do mundo dos três irmãos (a ingenuidade da mais nova, o deslumbramento do do meio e a perspicácia do mais velho) com uma perspectiva adulta, mesmo que boa parte dos adultos desta história seja mais falível do que responsável. E mantém um balanço difícil entre luminosidade e melancolia, não forçando nem o humor nem o drama, embora não escape a algumas conveniências de argumento lá mais para o final. Mas sem nunca trair a natureza das personagens nem a espontaneidade e sinceridade que emanam de uma das revelações do ano cinematográfico português (estreada no Festival de Locarno em 2019 e a pedir acesso ao circuito comercial entre nós).

4/5

Piccolo Corpo.jpg

"PICCOLO CORPO", de Laura Samani: Vencedor da competição de Melhor Filme da Festa deste ano, este estudo de personagem está muito longe do perfil de crowd-pleaser de "Magari", mas deixa tantos ou mais sinais de uma voz autoral que vale a pena conhecer.

Relato de uma "mãe coragem" que insiste numa jornada arriscada para salvar a alma do seu bebé, morto à nascença, tentando ressuscitá-lo momentaneamente para que seja baptizado e não fique condenado ao Limbo, a primeira longa-metragem de uma realizadora com escola nas curtas e documentários é uma ode à resiliência feminina e à abnegação da maternidade.

Apostando num curioso registo de road movie de época (decorre numa pequena comunidade piscatória da Itália de inícios do século XX), vai cruzando acessos de simbolismo, esoterismo e realismo mágico.

Laura Samani nem sempre gere o ritmo do modo mais envolvente e talvez recorra de forma excessiva à câmara à mão, mas tem duas presenças fortes no centro da narrativa, Celeste Cescutti e Ondina Quadri, além de desenhar uma parábola com uma carga sensorial inatacável, do sentido de espaço à sonoplastia (a tirar partido do som do mar e do vento, sem banda sonora adicional), da reconstituição de época singular e palpável à profusão de dialectos (que se vão sucedendo à medida que a protagonista muda de região). E por muito cru e angustiante que o cenário se torne, a integridade desta mãe obstinada impede que caia no miserabilismo, apesar de se arriscar a ser algo hermético para alguns - sintoma de um filme mais fácil de respeitar e até de admirar do que daqueles aos quais se adere sem reservas.

3/5