Pára ou a avó repara
Catherine Deneuve, na pele de uma mulher que tenta salvar o neto de mergulhar no radicalismo islâmico, é dos melhores motivos para não deixar escapar "O ADEUS À NOITE", de André Téchiné. E também para louvar a estreia do filme mais recente de um realizador cuja obra, ao contrário de outros tempos, tem chegado de forma intermitente ao circuito comercial português.
Aos 77 anos, André Téchiné está entre os cineastas franceses mais respeitados enquanto se mantém também entre os mais prolíficos, mesmo que nem todos os seus filmes tenham tido direito a passagem pelas salas nacionais nas últimas duas décadas. É verdade que os seus dias de triunfo crítico e comercial foram especialmente fortes nos anos 90, mas ainda há (bons) motivos para continuar a acompanhar o autor de "Os Juncos Silvestres" e "A Minha Estação Preferida".
"O ADEUS À NOITE" é um deles, um filme com tanto de reconhecível - um olhar sobre a família e em especial sobre os jovens, em ambiente campestre - como de inesperado, e até de radical, em mais de um sentido - ao abordar a temática sempre ardilosa do terrorismo a partir da experiência de um jovem francês que quer aderir ao Estado Islâmico.
Retrato de um conflito cultural e ético a partir de um fosso geracional, o drama nasce da reacção de uma avó à descoberta de uma faceta desconhecida (e alarmante) do neto, novidade que vem colocar em causa um relacionamento já de si pouco próximo - e assombrado por uma história familiar marcada pela tragédia e trauma. Téchiné, no entanto, mantém-se a milhas do dramalhão de faca e alguidar a que esta premissa poderia facilmente conduzir, revelando a sensibilidade e perspicácia habitual ao medir o pulso das relações humanas enquanto as cruza com um olhar mais vasto sobre uma das grandes ameaças do mundo contemporâneo - ainda que a acção se situe na Primavera de 2015.
Juntando, pouco a pouco, ingredientes de thriller ao que é, sobretudo, um estudo de personagem focado na avó encarnada por Catherine Deneuve, "O ADEUS À NOITE" talvez ganhasse em explorar um pouco mais a fundo a crise de referências do neto e a obstinação/fanatismo da sua companheira, a outra figura-chave desta história. Uma série como a recente "Kalifat" (disponível na Netflix), por exemplo, conseguiu dar a ver o fascínio de adolescentes europeus pelo ISIS com outro fôlego, além de desenhar um quadro mais amplo da organização terrorista. Mas Téchiné, sem deixar um testemunho obrigatório, também nunca se torna panfletário nem maniqueísta, e abre espaço para outros olhares sobre a comunidade islâmica através de algumas personagens secundárias.
Inspirado pelo livro "Les français jihadistes", de David Thomson, que recolheu depoimentos de jovens soldados terroristas, o argumento foi escrito a quatro mãos - as do realizador e de Léa Mysius ("Ava") - e não é imune a algum esquematismo, em parte compensado pela inteligência emocional que Téchiné não perdeu e à qual Deneuve dá corpo sem parecer esforçar-se. Já tinha sido ela o pilar de "A Verdade", de Hirokazu Koreeda, estreado há poucos meses por cá, e talvez o seja ainda mais aqui, não desfazendo do casal composto por Kacey Mottet Klein (que transita de "Quando Se Tem 17 Anos" e consegue adaptar-se a um papel bem diferente) e Oulaya Amamra (a manter a garra que já mostrava em "Vampires", série francesa da Netflix).
Dona de uma quinta no sul de França, cenário de cerejeiras em flor e aulas de equitação, com um quotidiano pacato apenas beliscado pelas investidas de um javali, a protagonista é obrigada a debater-se com um desafio para o qual não tem resposta. E Deneuve torna-a numa mulher palpável, entre o desnorte repentino e a fuga para a frente, incapaz de aceitar não conseguir salvar o neto enquanto tenta demovê-lo de uma viagem que se arrisca a ser a última. Téchiné trata essa angústia com respeito, sem forçar a nota, e mantém uma contenção que passa ainda pela banda sonora de Alexis Rault, também ela um belo motivo para descobrir "O ADEUS À NOITE" numa sala de cinema.
3/5