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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

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Perdido no espaço (urbano)

Entre o realismo social, o realismo mágico e sugestões de ficção científica, "GAGARINE" é uma rara primeira obra que já chega com uma linguagem própria e consolidada. A dupla Fanny Liatard e Jérémy Trouilh parte do bairro, espreita as estrelas e impressiona num dos filmes mais surpreendentes do cinema francês recente.

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Embora o título possa sugeri-lo, "GAGARINE" não é um biopic do astronauta soviético que se destacou como o primeiro homem a viajar no espaço. Mas Yuri Gagarin não só surge em algumas imagens de arquivo como baptizou - e inaugurou, nos anos 60 - o bairro dos arredores de Paris que dá nome à primeira longa-metragem de Fanny Liatard e Jérémy Trouilh.

A dupla francesa já tinha realizado uma curta homónima, estreada em 2015, e expande as suas ideias num filme que arranca como um drama social e insiste em não se manter nesse território, mesmo que também nunca chegue a abandoná-lo por completo.

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Cruzamento de referências que deriva da aventura de um adolescente no bairro que foi demolido em 2019, "GAGARINE" ficciona os últimos dias desse bloco de mais de 300 de apartamentos - ocupados sobretudo por imigrantes africanos, muçulmanos e do leste europeu - e vai acompanhando o seu processo de evacuação. Mas o protagonista insiste em ir ficando e é a partir da sua solidão e resiliência que o filme desenha um retrato coming of age face melancólico e idealista, capaz de conjugar realismo e acessos oníricos sem trair as personagens nem desnortear o espectador (embora insista em surpreendê-lo com um entusiasmo que marca as melhores primeiras obras).

Se o bairro social é, para muito cinema, sinónimo de um mergulho na xenofobia, criminalidade, tráfico de droga e pobreza (veja-se o também recente e conterrâneo "Os Miseráveis", de Ladj Ly), Liatard e Trouilh optam por enaltecer os elos comunitários que se geram nesse território, focando a faceta mais esperançosa de um quotidiano incerto e a dinâmica cúmplice que se estabelece entre os residentes - e que se perderá com o abandono forçado desse espaço.

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"GAGARINE", tal como o seu jovem herói - não por acaso, chamado Youri -, prefere o escapismo ao miserabilismo, o que não o impede de apontar o dedo às privações dos marginalizados e a fenómenos urbanos que as tornam mais evidentes, como o da gentrificação.

A partida imposta rima com a premissa de um dos filmes portugueses mais notáveis dos últimos tempos, "O Fim do Mundo", de Basil da Cunha, curiosamente também ancorado num adolescente negro e a aproximar-se do cinema de género. Mas esta jornada iniciática ganha outra escala, ao sintonizar-se com a ficção científica e ao tornar o lar precário do protagonista numa nave espacial - ou a versão possível de uma nave espacial, impecavelmente criada por uma dupla de realizadores imaginativa e a brilhante direcção de fotografia de Victor Seguin.

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Além de muito conseguido visualmente, "GAGARINE" ganha espessura emocional ao equilibrar um argumento sólido e um elenco que convence, dos actores estreantes aos mais experientes. Alseni Bathily, que encarna Youri, será a grande descoberta, num primeiro papel ao qual imprime vulnerabilidade, obstinação e uma capacidade de deslumbramento que passa para lá do ecrã. E se é verdade que o filme poderia ter dado mais atenção a alguns secundários e afinado os seus arcos narrativos, nunca é menos do que uma bela viagem ao universo (pessoal mas claramente transmissível) de Liatard e Trouilh. Esperemos que não seja a última de longa duração...

3,5/5