Poder(zinho) absoluto
Javier Bardem é imperial em "O BOM PATRÃO", comédia negra que junta um estudo de personagem ambíguo a um olhar aguçado sobre o mercado de trabalho. Grande regresso do espanhol Fernando León de Aranoa, merecidamente aplaudido.
Com 20 (!) nomeações aos Goya e na corrida à lista de finalistas do Óscar de Melhor Filme Internacional, a nova obra de Fernando León de Aranoa é uma das sensações do cinema espanhol da temporada e não lhe faltam motivos para isso.
Terceira colaboração entre o realizador madrileno e Javier Bardem - depois de "Às Segundas ao Sol" (2002) e "Amar Pablo, Odiar Escobar" (2017) -, destaca-se como um óptimo exemplo de um cinema virado para o grande público (foi um sucesso de bilheteira durante meses no país vizinho) sem com isso se limitar a apostar no maior denominador comum, seja a comédia óbvia e estereotipada ou um argumento que se adivinha à distância.
Pelo contrário, "O BOM PATRÃO" mostra como se faz a inúmeros subprodutos (sejam séries ou filmes) de "nuestros hermanos" que têm tido maior expressão por cá graças ao streaming (e em particular à Netflix), sabendo como apresentar um retrato acessível mas lúcido e exigente.
Começa logo bem, claro, ao entregar o papel principal a Javier Bardem, que tem aqui dos seus melhores desempenhos dos últimos anos numa personagem que, ao contrário das de demasiados filmes rodados do outro lado do Atlântico (como os frustrantes "Dune" ou "Being the Ricardos"), lhe permite alcançar voos muito mais altos. Blanco, o popular, carismático e poderoso proprietário de uma fábrica de balanças industriais de uma pequena localidade espanhola, é um daqueles papelões que merecia agarrar mais vezes, e por si só capaz de conferir ao filme um magnetismo que o realizador sabe aproveitar.
Ao acompanhar o protagonista ao longo de uma semana, "O BOM PATRÃO" propõe uma viagem a um microcosmos comunitário e laboral ancorada no quotidiano de um homem ambíguo, a tentar equilibrar o aparente altruísmo e o mais profundo egoísmo, a sedução e a corrupção, amizades de décadas e compadrio vicioso, e com as metas de produtividade e "prestígio" a conduzirem a uma desumanização e precariedade que ninguém questiona. Ou não questionava, até ao dia em que um trabalhador "dispensado" insiste em fazer-se ouvir, doa a quem doer. E se inicialmente esse grito é quase inaudível para o seu ex-patrão (talvez não tão bom como pensa), o passar dos dias torna-o num ruído difícil de calar.
Os conflitos de classes e as desigualdades no mercado de trabalho são um tema caro a Aranoa pelo menos desde "Às Segundas ao Sol", estreia que o revelou enquanto adepto de um realismo social desencantado. "O BOM PATRÃO", no entanto, opta pela comédia negra, às vezes em tom de farsa, para uma sátira astuta à máquina capitalista, aos abusos de poder sistemáticos e a uma visão do mundo nascida do privilégio - e por isso alheia à misoginia, ao assédio sexual e ao racismo, situações que o olhar do realizador também toca, embora sem grandes sublinhados.
Filme de actor? Bardem é claramente o dono disto tudo, à medida da sua personagem, o que não retira mérito ao excelente elenco secundário, fulcral para elevar uma comédia que se vai afastando das caricaturas sugeridas ao início. E na brilhante recta final, já guiada pelo suspense e a caminho do thriller, "O BOM PATRÃO" deixa mais provas de um argumento bem carpinteirado, com direito a uma das últimas cenas mais fortes em muito tempo - um portento de humor negríssimo, tensão psicológica e direcção de actores.
São essas qualidades interpretativas e de escrita, aliás, que elevam um filme que teria ainda mais força com outro fulgor estético. Aranoa vale-se de uma solidez industrial que faz falta a muito cinema (desde logo ao português), mas nem sempre é um realizador visualmente estimulante (caso de algumas cenas de diálogos feitas quase só de campos/contracampos), mesmo que saiba desenhar uma realidade tão particular como palpável. Por outro lado, era bom se fossem essas as principais limitações da maioria das comédias, sobretudo as que têm o grande público em vista... e esta fica já com lugar guardado entre as melhores do ano, venha o que vier.
4/5