Por aqui a guerrilha não impede a festa
Do ponto de situação do activismo LGBTI+ no Brasil ao acolhimento de filmes censurados na Indonésia ou no Quénia: os olhares inclusivos voltam a marcar o QUEER LISBOA, entre 20 e 28 de Setembro, no Cinema São Jorge e na Cinemateca Portuguesa.
É em tom de guerrilha que arranca a 23ª edição do Festival Internacional de Cinema Queer, com a sessão de abertura a cargo de "Indianara", documentário de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa sobre a activista brasileira que dá título ao filme e que tem lutado pelos direitos das pessoas transgénero. Mas também há espaço para festejar numa programação que assinala os 50 anos de Stonewall, os 20 da Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa e os 40 da secção Panorama do Festival de Berlim.
Serão mais de 100 filmes de mais de 30 países, com formatos entre curtas, longas, documentários ou as experiências da Queer Art. De volta estão ainda as Hard Nights e Queer Pop, esta última com Conan Osíris ou Lena d'Água em destaque. Um foco especial no ecosex, a secção Corpos Desejo Paisagens, exposições e debates também estão entre as apostas ao longo dos próximos dias, até ao final com "Skate Kitchen", da norte-americana Crystal Moselle ("The Wolf Pack"). Para ir abrindo caminho e ajudar na escolha, ficam cinco sugestões que se destacaram ao espreitar o programa:
"DADDY AND THE MUSCLE ACADEMY", de Ilppo Pohjola: As origens do imaginário homoerótico e fetichista de Tom of Finland, que marcou como poucos a iconografia gay, estão no centro deste documentário de 1991 que integra a secção dedicada aos 40 anos da secção Panorama do Festival de Berlim. O resultado conjuga depoimentos do próprio artista finlandês sobre a sua vida pessoal e profissional, memórias de fãs de várias partes do mundo, uma retrospectiva do seu trabalho e recriações em imagem real dos desenhos, tendencialmente de perfil S&M e com doses generosas de couro e uniformes.
"MEMORIES OF MY BODY", de Garin Nugroho: O novo filme de um dos veteranos do cinema indonésio (embora com pouca expressão nas salas portuguesas) é também o concorrente do país deste ano a Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Mas não sem ter gerado controvérsia pelo caminho: este retrato de um bailarino de uma dança tradicional na qual os homens podem assumir formas femininas foi banido em algumas regiões, que o acusaram de desviante e de promover valores LGBTI+. Fora de portas, não falta quem tenha elogiado esta jornada entre a infância e a idade adulta, marcada pela descoberta do corpo e da sexualidade, a partir de uma pequena aldeia de Java. Os festivais de Veneza e Guadalajara, por exemplo, estão entre os que se rendeream (e nomearam ou premiaram) o drama baseado na história verídica de Rianto, um dos actores que interpretam o protagonista.
"OS REBELDES DO DEUS NEON", de Ming-liang Tsai: A secção dedicada aos 40 da secção Panorama do Festival de Berlim oferece uma oportunidade de (re)ver a primeira longa-metragem do autor de "O Sabor da Melancia" ou "Adeus, Dragon Inn". E é também uma oportunidade de percorrer as ruas de Taipei através do quotidiano de dois adolescentes com uma relação tão magnética quanto conflituosa. Entre o tédio existencial e a revolta juvenil, a decadência urbana e a alienação, fica a promessa de um drama árido, que não facilita consensos mas já dava pistas da singularidade visual do cineasta malaio.
"RAFIKI", de Wanuri Kahiu: Apesar de ter sido banido no Quénia, onde a homossexualidade é ilegal, o primeiro filme do país a abordar directamente uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo tem sido acolhido de braços abertos fora de portas. Drama ancorado na cumplicidade entre duas raparigas oriundas de famílias rivais, lembra a premissa de "Romeo e Julieta" (em versão lésbica), mas tem inspiração mais directa num romance de uma autora do Uganda. E se há quem aponte a familiaridade desta história girl meets girl, o muito louvado carisma e energia tanto da realização como do elenco têm conseguido ofuscar essas limitações. A entrada na secção Un Certain Regard Award e Queer Palm em Cannes, entre outros aplausos, ajuda a dar o voto de confiança além do gesto político sem precedentes.
"SÓCRATES", de Alexandre Moratto: Uma das primeiras obras brasileiras mais elogiadas do momento, assinada por um cineasta que já passou pelas curtas e documentários (além de ter sido assistente de realização de Ramin Bahrani em "Goodbye Solo"), centra-se no quotidiano de um adolescente de 15 anos em São Paulo, depois da morte da mãe. Obrigado a sobreviver sozinho, enfrentando dificuldades financeiras enquanto lida com a homofobia, o protagonista parece destinado a um drama miserabilista, mas o filme tem sido elogiado por contornar armadilhas de algum realismo social. Nascido em parte do projecto de uma ONG que apoia jovens desfavorecidos no audiovisual - do qual saiu a escolha de alguns actores, incluindo o principal -, "SÓCRATES" tem tido um percurso invejável em festivais internacionais - e com direito ao prémio Someone to Warch nos Indendent Spirit Awards para o realizador. Entre os produtores executivos está Fernando Meirelles, que entre "Cidade de Deus" e "Pico da Neblina" se tem especializado no mergulho em ambientes comparáveis.