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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Quem precisa de outra Cruella quando tem Sheila Rubin?

Nova candidata a protagonista que os espectadores vão amar odiar, Rose Byrne é a anti-heroína cáustica de "PHYSICAL" e, por si só, uma óptima razão para espreitar a mais recente série da Apple TV+. Mas há outros motivos que elevam o arranque desta comédia negra ambientada na Califórnia do início dos anos 80.

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Sheila Rubin não só não é uma personagem que mendigue a simpatia do espectador como parece determinada a repelir qualquer sinal de afeição. Os pensamentos que acompanham a sua crónica de um quotidiano entorpecido num subúrbio de San Diego, promovidos a narração em off dos primeiros episódios de "PHYSICAL", são alguns dos mais viperinos e corrosivos de uma ficção norte-americana em muito tempo (ao lado da Rosamund Pike de "Tudo Pelo Nosso Bem", outra comédia negra curiosa, esta da Netflix).

Mas por detrás das farpas cruéis que a protagonista dispara contra tudo e contra todos está uma exasperação que já parece vir a ser arrastada há anos, motivada por um percurso universitário auspicioso que desembocou num casamento acomodado e numa vida de dona de casa desesperada.

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Como é que esta mulher, que parecia limitada a ajudar a alavancar a carreira política do marido (depois de uma carreira falhada como professor), se tornou numa referência da aeróbica, com um negócio bem-sucedido aparentemente criado a pulso? Essa é a história que a primeira temporada da nova aposta da Apple TV+ vai contar enquanto pede o título emprestado a uma canção da mesma época de Olivia Newton-John. Mas "PHYSICAL" é um título que tem mais de uma leitura, ou não fosse a condição física um dos factores para que a saúde mental de Sheila surja tão fragilizada nos capítulos iniciais.

O body shaming, muitas vezes veiculado pela personagem principal, destaca-se num argumento que é muito do seu tempo embora a acção recue algumas décadas. Do empoderamento feminino aos exemplos de mansplaining, a série criada por Annie Weisman (que, não por acaso, foi produtora de "Donas de Casa Desesperadas") atira-se a vários temas quentes e "actuais" mas tem a subtileza de os integrar num retrato convincente e vivo da protagonista.

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Rose Byrne também ajuda, claro, ao encarnar com garra e graça uma figura dissimulada e ressentida, enquanto que Craig Gillespie tem aqui uma história à sua medida: tal como em "Eu, Tonya" ou no recente "Cruella", o realizador acompanha uma mulher que triunfa (e cai?) de acordo com as suas próprias regras. O australiano dirige o primeiro capítulo e dá o tom enérgico e acelerado aos seguintes, nos quais a câmara à mão é um recurso justificado pela tensão que vai dominando o dia a dia da protagonista.

Nem tudo resulta: o desdém do ponto de vista da protagonista, embora seja muitas vezes hilariante, também encurrala as personagens secundárias em figuras bidimensionais, uma limitação que fica por resolver no argumento dos próximos episódios. Por outro lado,  "PHYSICAL" mostra-se bastante astuta na abordagem ao vício ou a distúrbios alimentares como a bulimia, deixando duas ou três cenas tão memoráveis como desconcertantes - uma envolve um frasco de mel, outra decorre num quarto alugado. E graças a sequências como essas ou à postura politicamente incorrecta da protagonista, a série distancia-se de uma resposta da Apple TV+ a "GLOW", da Netflix (outro retrato feminino ambientado nos anos 80 e com desporto/actividade física à mistura), que poderia ter sido sugerida à partida. Agora é assegurar que a surpresa não se esbata à primeira vista...

Os três primeiros episódios de "PHYSICAL" estão disponíveis no Apple TV+ desde 18 de Junho. A plataforma de streaming estreia novos episódios todas as sextas-feiras.