Regressar a Sines pela porta grande
Finalmente de volta, o FESTIVAL MÚSICAS DO MUNDO passou por Porto Covo e decorre em Sines até sábado, dia 30 de Julho. Os concertos da noite no Castelo e junto à Praia Vasco da Gama, já de madrugada, arrancaram da melhor forma com estreias memoráveis de LETRUX e KUTU, respectivamente.
Nuno Pinto Fernandes/FMM
"Letrux em Noite de Climão" (2017), o primeiro álbum a solo de Letícia Novaes (editado depois de a cantautora brasileira ter feito parte dos Letuce) tem um daqueles títulos que não enganam. Mas a festa que promete - e oferece - está longe de se esgotar nesse conjunto de canções inicial e mantém-se (em modo ainda mais bamboleante) quando LETRUX sobe a um palco. Algumas actuações disponíveis online já o sugeriam, os dois espectáculos esgotados esta semana no Musicbox Lisboa mostram que já não são um segredo bem guardado e a estreia da artista em Sines, esta quarta-feira, dia 27 de Julho, confirmou-o sem hesitações ao longo de quase uma hora (que bem podiam ter sido duas).
Foram nove anos de espera, confidenciou a brasileira, ao recordar umas férias em Porto Covo durante as quais conheceu o Festival Músicas do Mundo (FMM) e fez questão de vir a fazer parte do cartaz um dia. A situação pandémica talvez tenha atrasado ainda mais que esse desejo se concretizasse, mas assim LETRUX teve a honra de inaugurar o horário nocturno dos concertos no Castelo desde a última edição do evento, em 2019.
Apresentando-se ao lado de uma banda que ajudou a levar as suas canções para voos ainda mais altos, trouxe uma máquina cintilante, surpreendente e muitíssimo bem oleada, que girou em torno dos seus dois álbuns ("Letrux aos Prantos", de 2020, é o mais recente), nos quais se tem afirmado como uma voz a não deixar passar entre a nova música brasileira.
Mário Pires/FMM
"Me Espera", colaboração com Mulú que não está incluída em nenhum dos discos, foi editada no ano passado, trouxe reflexos da pandemia na letra e deixou uma ode ao Verão celebrada a preceito nos primeiros momentos do concerto. Single irresistível, num flirt com uma house de tempero nostálgico, contrastou com a intensa "Déja-Vu Frenesi", que marcou o arranque de uma actuação tão versátil como os álbuns.
Se o início foi envolvente, "Que Estrago" tornou o cenário fervilhante, impondo-se com uma versão mais musculada do que a gravada (via contaminações industriais) e despertando o primeiro grande episódio de agitação colectiva. O facto de a anfitriã ter tirado um fio rosa da boca durante largos segundos ajudou, além de ter sublinhado o efeito intrigante de boa parte da energia que dominou o espectáculo. Intrigante e ilusório, mas com a "ilusionista" a assumir sempre o artifício: lamentou o lado limitador da passagem do tempo enquanto propôs encará-lo de outra perspectiva (quando a actuação se encaminhava para a despedida), pediu para o público fingir que estava a viver uma noite quente de Verão (apesar de muitos espectadores com calças e casacos) ou que a banda já tinha saído do palco e regressado no final do concerto (fintando o protocolo do encore) e vestiu ainda a pele de personas tão carismáticas como delirantes num alinhamento que foi da contenção da balada "Dorme com Essa" ao furor disco de "Ninguém Perguntou por Você", com sintetizadores e ritmos ao alto.
Nuno Pinto Fernandes/FMM
Ainda assim, nem tudo foi ilusão. O choque de realidade chegou, embora sem dispensar a vertente cénica, quando LETRUX tirou o macacão que envergou durante a primeira metade do espectáculo para exibir uma t-shirt de apoio a Lula da Silva (que seria complementada por um leque mais à frente). "Bom ano novo", gritou, numa alusão às eleições presidenciais brasileiras, assinalando outro momento especialmente bem acolhido.
Sempre comunicativa e bem-humorada, homenageou ainda o mar e as mulheres e elogiou a versão portuguesa de "Parabéns a Você", que admitiu preferir à brasileira, depois de o público a ter cantado ao seu baixista, o aniversariante do dia. Já os espectadores foram presenteados com um concerto claramente a pedir regressos (além da digressão nacional em curso), sobretudo quando se tornou mais acelerado e electrónico em trunfos como "Contando Até Que" ou na despedida a cargo de "Flerte Revival" e "Vai Brotar", com a artista e a banda em ponto de rebuçado (menção especial para o poderio da percussão). "Obrigadinha", disse várias vezes. "Carece não", retribuímos enquanto pedimos um concerto mais longo (e, já agora, sem a interminável e algo demorada fila à entrada, que beliscou o entusiasmo inicial).
4/5
Nuno Pinto Fernandes/FMM
Se LETRUX abriu com chave de ouro o horário nocturno do Castelo, os KUTU mantiveram o patamar elevado ao inaugurarem o Palco Galp, na Avenida Vasco da Gama, junto à praia, dedicado a espetáculos de entrada livre já de madrugada. Em vésperas de editar o álbum de estreia ("Guramayle", agendado para 2 de Setembro), o projecto cuja formação base inclui o violinista francês Théo Ceccaldi e as cantoras etíopes Hewan Gebrewold e Haleluya Tekletsadik ofereceu outro grande concerto de estreia no festival, juntando o tradicional e o urbano.
Por vezes implosiva, noutras trepidante, foi uma conjugação tão personalizada como inesperada de herança árabe, transe de ecos pós-punk (cortesia do baixo), viagens entre o techno e o dub, aura cinematográfica e pulsão tribal. Pelo meio, o violino de Ceccaldi proporcionou alguns episódios melódicos, às vezes abruptamente interrompidos pela intensidade das duas vocalistas ou de outros elementos do formato da banda ao vivo (que inclui ainda bateria e teclas). Grande surpresa na melhor escola FMM, a tirar o partido da fusão e do esbatimento de fronteiras entre géneros e geografias.
4/5