Retrato de uma senhora
Quem é "ELA"? O novo filme de Paul Verhoeven nunca chega a dar a resposta toda, mas o fascínio está mais na viagem do que no destino - e sobretudo em Isabelle Huppert, capaz de elevar este arriscado (e desequilibrado) conto amoral.
O próprio realizador de "Instinto Fatal" ou "Robocop - O Polícia do Futuro" tem admitido em entrevistas que o papel de Isabelle Huppert nesta adaptação do livro "Oh..." (2012), de Philippe Djian, foi muito além da mera vertente interpretativa, com a actriz francesa a moldar novos acontecimentos da história durante as filmagens, sem qualquer aviso prévio. E essa apropriação acaba por ser sugerida em vários momentos destas mais de duas horas sempre agarradas à protagonista, uma determinada mulher de negócios (e mãe, e amante, e amiga...) de meia-idade que dificilmente encaixaria tão bem na pele de outra estrela - na pele de Nicole Kidman ou Diane Lane, que rejeitaram o convite, "ELA" teria sido certamente um filme muito diferente e quase de certeza menos fascinante.
Não é que o mérito seja todo da actriz que este ano teve outros papéis de realce em "O que Está por Vir" ou "Ensurdecedor": Verhoeven arranca o filme com uma cena de violação e o que se segue tem sido amplamente elogiado, tanto pela forma como foge à vitimização fácil deste tipo de crónicas como por rejeitar a caracterização da protagonista como heroína feminista e modelo de comportamento. Mas por muito que o resultado seja, à partida, mais sofisticado do que a imagem de marca do holandês (para o pior e mais recentemente para o melhor, marcada por "Showgirls"), naquele que é o seu primeiro filme falado em francês e ambientado na burguesia parisiense, "ELA" acaba por nem sempre acompanhar o desempenho de recorte superior de Huppert, de longe o seu elemento mais confiável e consistente.
Verhoeven sai-se bem na conjugação de comédia de costumes truculenta com thriller psicológico mais ancorado em obsessões do que em traumas e recalcamentos, mistura difícil mas conseguida quando nem ele nem Huppert se levam muito a sério. Por outro lado, essa ironia também dá a esta narrativa um tom demasiado auto-consciente (ouça-se a música a meio caminho do terror nas cenas supostamente mais tensas) que faz com que os conflitos em jogo se sigam sempre com algum distanciamento.
Aliás, só com distanciamento se podem aceitar viragens como as da segunda metade de "ELA", com Verhoeven igual a si próprio - o que nem sempre é uma vantagem - e a ameaçar quebrar a verossimilhança. Se o filme não se auto-destrói, é sobretudo graças a Huppert, capaz de se manter inabalável independentemente do absurdo da situação - e de nos fazer acreditar na mulher ambígua e intimidante que defende.
Embora segui-la seja sempre um desafio convidativo, até porque o realizador é hábil a percorrer a sua rotina amorosa, familiar e profissional, assim como na gestão de flashbacks, as personagens com as quais se vai cruzando ficam, infelizmente, aquém da sua figura de corpo inteiro. A colecção de cromos que o argumento junta está, pelo contrário, demasiado próxima das caricaturas de muitas comédias francesas que continuam a chegar quase todas as semanas às salas, e assim a densidade dramática esgota-se praticamente na protagonista. E isso, ao lado de cenas como a da revelação da identidade do violador (menos surpreendente do que o que o filme parece pensar) ou do final meio Deus ex machina (e meio desapontante depois de momentos bem mais astutos), corta alguma da força de "ELA", mesmo que esteja aqui um dos objectos mais desafiantes (e inesperadamente lúdicos) de 2016.
3,5/5