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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Se organizar direito, todo o mundo cabe (e quase tudo é permitido)

"A gente já esteve aqui", cantou LETRUX esta quarta-feira, 19 de Abril, numa noite no Musicbox Lisboa esgotada há meses. E poucas vezes essa constatação de "Déjà Vu Frenesi" terá feito tanto sentido: a brasileira actuou duas vezes no mesmo dia na sala do Cais do Sodré, onde também já se tinha apresentado na terça, noutro concerto com casa cheia. No final, só lhe faltou dizer "A gente vai voltar aqui"... mas essa certeza ficou mais do que implícita.

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Filipa Aurélio/Musicbox Lisboa

Num muito bem-sucedido regresso a Portugal (onde tinha deixado óptimas memórias no ano passado), que também inclui espectáculos no Porto e em Coimbra, a autora de "Letrux em Noite de Climão" (2017) e "Letrux aos Prantos" (2020) não regressou com um novo disco, mas antes com um documentário, "Letrux: Viver é um Frenesi", que motivou uma sessão no Cinema Ideal, em Lisboa, esta quinta-feira, e também pode ser visto gratuitamente no site do Sesc Digital (e só peca por ser tão curto, com pouco mais de 30 minutos de duração).

Uma das cenas mais reveladoras do filme de Marcio Debellian, que percorre a infância e adolescência de Letícia Novaes mas também a fase da pandemia, é quando a cantora, compositora, actriz e escritora carioca explica a origem do seu nome artístico, associando-a ao verbo "to let", em inglês. "Eu me permito", confidencia, e essa liberdade já evidente nos discos de horizontes bem abertos também percorreu um concerto que, tal como o documentário, cruzou tempos e referências, paixões e recordações.

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Apostando num formato intimista, acompanhada de apenas dois músicos (Arthur Braganti nos teclados, guitarra e segunda voz boa parte do concerto, Pedro Colombo em participações pontuais na guitarra), LETRUX conjugou originais e versões, homenageando figuras marcantes do seu percurso numa viagem de quase hora e meia que foi da MPB à synth-pop, do rock de contornos indie a acessos flamenco.

Pelo caminho, entre recortes de fases da sua vida, permitiu-se até abraçar clichés de peito aberto, caso da interpretação do clássico/património brasileiro "Águas de Março", episódio inicialmente traído por problemas técnicos quando uma guitarra insistiu em não colaborar.

Também se deu ao luxo de incluir uma espécie de intervalo publicitário, com o humor como trunfo, para promover a venda de sungas inspiradas no imaginário dos álbuns, ou de dispensar o encore, oferecendo as últimas canções depois de pedir ao público que imaginasse a sua saída e regresso a palco.

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Filipa Aurélio/Musicbox Lisboa

Partindo das palavras de gente tão diferente como William Shakespeare (num breve e eloquente monólogo inaugural) ou Clarice Lispector e revisitando canções de luminárias conterrâneas como Marina Lima, Rita Lee, Barão Vermelho ou Caetano Veloso, ofereceu ainda uma das versões mais inesperadas ao recordar "Take My Breath Away", dos norte-americanos Berlin, dando uma cama de teclados e um tom mais espacial ao tema-chave de "Top Gun" (a sua escolha musical para o seu eventual casamento, ficámos a saber) e levando um céu estreado ao Musicbox, numa das opões cénicas mais conseguidas, provando que a limitação de recursos não tem de comprometer a criatividade.

O seu cabelo, por exemplo, foi todo um programa e valeu por um par de adereços ou trocas de guarda-roupa. Praticamente mutante de canção para canção, esvoaçante ou apanhado de várias formas, foi igualmente expressão de uma liberdade que também passou pela forma solta, e ao mesmo tempo teatral, com que a carioca se atirou a canções de terceiros. Fica-se com a ideia de que poderia cantar qualquer coisa, não só pelos méritos vocais mas tanto ou mais pela capacidade performativa total, onde cada gesto ou olhar conta - como contam as intervenções e apartes tendencialmente espirituosos a meio das canções ou entre elas.

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Filipa Aurélio/Musicbox Lisboa

"Essa canção é dedicada à tradicional família brasileira sapatã", disse antes de "Que Estrago", um dos temas mais fulminantes do disco de estreia. "Ou à tradicional família portuguesa fufa", acrescentou. Do seu catálogo, brilharam ainda a confissão bilingue "I'm Trying to Quit", as sempre tocantes "Dorme com Essa" (a alusão a Lisboa não passou despercebida e foi dos momentos mais celebrados) e "Cuidado Paixão" ou as festivas "Flerte Revival" e "Me Espera", potentes disparos de adrenalina no final.

Tivemos frenesim, climão e alguns prantos, temos decididamente um novo fenómeno por cá.

Nota: as fotos deste post são do concerto de 18 de Abril