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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Sim, são telefilmes, mas merecem ser vistos sem preconceito

Com as salas de cinema fechadas, a televisão e o streaming são as alternativas possíveis. E talvez tragam mais oportunidades de descoberta de dois telefilmes recentes que se arriscam a passar despercebidos: um na Netflix, outro na RTP2/RTP Play, ambos histórias LGBTQ divididas em duas épocas.

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"AS VIDAS DE JONAS", de Christophe Charrier: Em dramas como "120 Batimentos por Minuto" ou "Sauvage", Félix Maritaud tem demonstrado que é um dos novos actores do cinema francês a seguir com atenção. Não admira, por isso, que esteja entre os melhores motivos para não deixar passar este telefilme francês - estreado no canal Arte em 2018 e disponível em Portugal há poucas semanas através da Netflix.

Mas felizmente esta segunda longa-metragem de um cineasta que já tinha outro telefilme e um documentário no currículo não se limita a ser um veículo para um talento em ascensão, sabendo conjugar e dosear elementos do thriller e de relatos coming of age (e coming out) na história de um rapaz ao longo de duas fases da sua vida - da adolescência passada na década de 90 à idade adulta, 15 anos depois.

O resultado é tão seguro e envolvente nos momentos de descoberta sexual, quando o protagonista se torna próximo de um novo colega do liceu, como nas cenas que dão conta dos efeitos dessa fase no seu percurso, à medida que a narrativa se centra num trauma enigmático e em alguns (re)encontros adiados.

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Charrier consegue conduzir o espectador entre as duas épocas sem o deixar perdido num mistério que se vai adensando, mas essa eficácia, complementada por uma lição de economia narrativa (o realizador não chega a pedir hora e meia para apresentar este retrato), acaba por o impedir de explorar mais a fundo as possibilidades dramáticas da história que tem em mãos - e Félix Maritaud até está muito bem acompanhado por um elenco à altura.

Ainda assim, esse lado esquemático é mais do que desculpável quando há por aqui um apuro estético evidente, entre o realismo e uma forte carga sensorial, a lembrar alguns filmes de Gregg Araki (cineasta explicitamente homenageado na narrativa, aliás). A banda sonora de Alex Beaupain, aqui a milhas das colaborações com Christophe Honoré (e em modo electrónico), também ajuda a tornar este telefilme discreto mais aconselhável do que muitos títulos que têm direito a estreia no grande ecrã.

3/5

"AS VIDAS DE JONAS" está disponível na Netflix.

O Homem da Camisa Laranja.jpg

"O HOMEM DA CAMISA LARANJA", de Michael Samuels: Se "As Vidas de Jonas" é um retrato que acompanha dois períodos da vida do protagonista, este telefilme da BBC dividido em duas partes (exibidas de seguida na RTP2 e na RTP Play) atravessa várias décadas, com o primeiro episódio a arrancar durante a II Guerra Mundial e o segundo a decorrer nos dias de hoje, acompanhando gerações diferentes de uma família britânica.

A viver as duas épocas está a personagem da matriarca, que sofre indirectamente as consequências da homofobia (ainda considerada crime na primeira parte do filme) dirigida ao seu marido e ao amante deste. A atenção que o argumento dá a esta mulher, interpretada na juventude por Joanna Vanderham e mais tarde por Vanessa Redgrave (ambas óptimas), é um dos aspectos mais curiosos quando tantos relatos LBGTQ no grande ou pequeno ecrã se focam exclusivamente nos dramas vividos pelos homossexuais. E embora os protagonistas de "O Homem da Camisa Laranja" sejam homens gay, boa parte da força dramática do filme deve-se ao recolhimento a que uma personagem feminina heterossexual se viu entregue.

O Homem da Camisa Laranja 2.jpg

Esse aspecto ajuda a tornar mais singular uma história que às vezes não anda longe da de outros relacionamentos homossexuais que já chegaram ao cinema - desde logo "O Segredo de Brokeback Mountain", próximo da narrativa da primeira parte -, mas que apesar das comparações é sempre verosímil e recusa julgar as personagens (mesmo que estas se julguem umas às outras). Mérito do guião do escritor britânico Patrick Gale, com espaço para respirar e ganhar corpo na realização do conterrâneo Michael Samuels - que não sendo particularmente imaginativa, sabe dar espaço aos olhares e gestos dos actores entre uma reconstituição histórica com a garantia de qualidade esperada numa produção da BBC, .

Se é fácil acreditar que Vanderham e Redgrave são a mesma mulher, a cumplicidade entre Oliver Jackson-Cohen e James McArdle também não é colocada em causa. A espiral descendente de Julian Morris, da solidão à insistência em aplicações de engate, é tão ou mais palpável, e nem um desenlace esperançoso trai a angústia captada por um drama de grande fôlego.

3,5/5

"O HOMEM DA CAMISA LARANJA" estreou na RTP2 a 3 de Abril e está disponível na RTP Play.