Suicídio encomendado
Para muitos - incluindo quase todos os que a conhecem -, a protagonista de "Mel" será só mais uma rapariga a remoer dramas típicos da idade enquanto viaja de bicicleta, metro ou avião, sempre com phones nos ouvidos, casaco de cabedal e olhar distante. Para o espectador da estreia na realização da italiana Valeria Golino, Irene é bastante mais misteriosa do que aparenta e peça fundamental num esquema de suicídio clandestino, dedicado a doentes terminais. Nome de código: Mel.
Mais do que nas configurações de uma rede de morte assistida, esta primeira obra centra-se numa situação de excepção que coloca em causa o pragmatismo da protagonista: o seu novo cliente, um homem de idade avançada, deseja morrer apesar de não ter problemas de saúde. Irene discorda e vê-se obrigada a colocar em causa não só esta rotina de "anjo da morte" mas também as opções que têm vincado a sua vida pessoal.
É precisamente pelo olhar sobre a vida pessoal de uma figura ambígua que "Mel" se demarca do que poderia limitar-se a mais um filme sobre a eutanásia. O tema torna-se incontornável na acção, é certo, mas raramente se impõe às personagens, até porque o dia-a-dia da protagonista não se esgota nessa actividade ilegal - a vertente amorosa, entre o desprendimento da relação actual e a nostalgia pela anterior, não é menos intrigante.
Se à frente das câmaras Valeria Golino já se tinha afirmado em filmes como "Rain Man - Encontro de Irmãos", "União de Sangue" ou "Respiro", atrás dá um primeiro passo seguro e promissor. Sem falhas de tom, sem julgamentos morais (deixando-os, ou não, para o espectador), com um sentido atmosférico envolvente na aliança entre imagem e música (da clássica à nova electrónica, sem tiques de videoclip), "Mel" tem ainda entre os atributos o desempenho de Jasmine Trinca, a dar razão a quem reparou nela em "O Quarto do Filho", de Nanni Moretti: aqui encontramo-la talvez menos empática, mas mais enigmática e complexa. Mesmo quando a realizadora não consegue evitar algumas redundâncias ou cenas excessivamente contemplativas (compreensíveis numa estreia), a actriz faz com que o interesse pelo rumo da sua personagem não esmoreça - e ajuda a fazer desta estreia uma obra a espreitar.