"DA 5 BLOODS: IRMÃOS DE ARMAS", o novo filme de Spike Lee, até pode estar alinhado com o espírito do seu tempo, mas o que prometia ser um olhar acutilante resulta numa colagem atabalhoada e auto-indulgente. E que se arrasta ao longo de mais de duas horas e meia...
A nova "joint" de Spike Lee, que estreou na Netflix há poucos dias, chega depois de "Blackkklansman: O Infiltrado" (2018) ter assinalado um dos casos de maior consenso entre aplauso crítico e popularidade do autor de "Não Dês Bronca" (1989). Mas se essa comédia activista em tons de farsa era quase sempre certeira no apontar de dedo ao racismo sistémico, partindo da sociedade norte-americana de ontem e de hoje, "DA 5 BLOODS: IRMÃOS DE ARMAS" desilude ao ser o oposto de uma conjugação refrescante de agenda temática, equilíbrio narrativo e fulgor estético.
O arranque não deixa de ser promissor: acompanhando quatro veteranos afro-americanos que regressam ao Vietname, décadas depois da guerra, para recuperar os restos mortais do líder do esquadrão e um tesouro escondido, Lee volta a mostrar-se atento a capítulos que envolvem a sua comunidade e que dificilmente chegam a palco (ou neste caso, ao ecrã) através de outras vozes. Aqui, é a participação significativa que os afro-americanos tiveram num conflito que inspirou várias ficções, incluindo alguns marcos cinematográficos, ainda que também aí os negros tivessem sido pouco lembrados e representados.
O ajuste de contas militante, sobretudo com o imperialismo e a segregação, está longe de ser novidade na obra do nova-iorquino e toma logo de assalto os primeiros minutos de "DA 5 BLOODS: IRMÃOS DE ARMAS", através de uma montagem de imagens de arquivo que inclui declarações de Martin Luther King ou Muhammad Ali, manifestações e motins nos EUA ou registos da carnificina em território vietnamita. Mas documentos históricos, contundentes e inquietantes como estes mereciam ser integrados num filme à altura, e o que se segue é dos maiores tiros ao lado do percurso de Spike Lee.
Em vez de um testemunho vibrante para os dias em que o movimento Black Lives Matter tem mais atenção do que nunca, fica um relato de confronto com o passado, com o sacrifício, com a discriminação e com o trauma que nunca chega a estabelecer um tom, perdido entre estilhaços do filme de guerra e de aventuras, do buddy movie, do relato de sobrevivência e de um ensaio politico, cultural e social que raramente é oportuno entre este cruzamento de géneros. A amálgama em si não é o problema: afinal, Lee já provou ser muito hábil no corta e cola. Mas aqui é quase sempre inconsequente, como quando recua até cenários de guerra mais para tirar partido de algum experimentalismo formal - com flashbacks granulados e saturados, filmados em 16mm, e ecrã na proporção 4:3 - do que para dizer alguma coisa relevante sobre os protagonistas que não tivesse já sido sugerida.
As personagens, aliás, são das maiores decepções de um filme desnecessariamente longo e que mesmo assim não chega a olhar para elas com grande interesse. As de Norm Lewis e Isiah Whitlock Jr., dois elementos do grupo protagonista, são especialmente esquecíveis, não indo além do esboço. As de Clarke Peters e Jonathan Majors têm direito a alguma vida interior, mas ficam reféns de dramas familiares com a espessura de um subenredo de telenovela (sobretudo o primeiro).
Sobra Delroy Lindo, na pele de uma figura que lida não só com o peso das contradições, hipocrisias, mágoas e paranóia da guerra mas também o com a tarefa ingrata de carregar um filme às costas. A entrega é evidente e a interpretação é do melhor que "DA 5 BLOODS: IRMÃOS DE ARMAS" consegue oferecer, mas não compensa quase tudo o resto - muito menos quando há um monólogo que parece derivar daquele que Edward Norton disparou em "A Última Hora" (2002) e o fosso qualitativo entre os dois filmes não podia ser maior. Opção curiosa: ao contrário de Martin Scorsese, que apostou no rejuvenescimento digital dos protagonistas do também recente "O Irlandês" (2019), Lee não tenta disfarçar a idade dos actores nas sequências da guerra do Vietname nem os substitui por um elenco jovem, diluindo a fronteira figurativa e emocional entre presente e passado.
Se as personagens principais já têm pouca espessura, as secundárias ficam reduzidas a estereótipos europeus e asiáticos, caso particularmente lamentável quando o realizador é um arauto da pluralidade. E não há ironia ou exercício pós-moderno que salve um Jean Reno como vilão de serviço saído das aventuras de James Bond, o que não deixa de ser irónico numa obra que chega a criticar os exageros de heróis americanos encorpados por Sylvester Stallone ou Chuck Norris.
Antes de se transformar num filme de acção banal, com diálogos constrangedores, reviravoltas telegrafadas e mortes tão ou mais previsíveis (e estranhamente pouco lamentadas, mesmo no caso de personagens à partida relevantes), "DA 5 BLOODS: IRMÃOS DE ARMAS" vai aludindo de forma mais ou menos directa a antecessores bélicos como "Apocalypse Now" (1979), incluindo a revisitação da Cavalgada das Valquírias (de Wagner) numa das cenas, a contrastar com canções de Marvin Gaye, dominantes noutras, e com o caldo instrumental perfeitamente dispensável de Terence Blanchard. A memória cinéfila é, no entanto, só mais uma curiosidade de um retrato cheio de piscares de olho idiossincráticos mas que desilude no essencial, vincado por um simplismo (mal) camuflado de subversão. Vidas (e histórias) negras não só importam como merecem filmes melhores.
Depois de ter arrancado em Lisboa em Abril, a 12ª edição FESTA DO CINEMA ITALIANO chega a Évora, Tomar, Caldas da Rainha e Loulé nos próximos dias. Da programação que passou pela capital, "Bangla" e "Napoli Velata" ficaram entre as melhores apostas deste ano.
"BANGLA", de Phaim Bhuiyan: Deliciosa, esta mistura de comédia e drama, a marcar a estreia de um realizador que também se encarrega do argumento, da produção e ainda arrisca o papel de protagonista. O facto de ser uma história em parte autobiográfica talvez ajude a explicar que seja tão credível, e com uma espontaneidade que obras de muitos realizadores mais experientes não conseguem emanar. A partir do dia-a-dia de um rapaz de uma comunidade do Bangladesh dos subúrbios de Roma (albergue de "hipsters, turistas e velhotes"), Bhuiyan vai falando, de forma certeira e contagiante, dos dilemas das diferenças culturais e da entrada na idade adulta. Essa inquietação é ampliada quando o protagonista se apaixona por uma rapariga italiana e caucasiana, obrigando-o a questionar códigos familiares, sociais e religiosos, mas "Bangla" nem tenta forçar uma resposta. Limita-se a dar conta da inquietação emocional de uma forma tão irreverente como calorosa, enquanto revela um realizador capaz de oferecer uma série de gags inspiradíssimos, numa das melhores comédias românticas em muito tempo - e uma espécie de resposta italiana à também aconselhável "Master of None", de Aziz Ansari, sem sair a perder na comparação e com personalidade e carisma mais do que suficientes.
3,5/5
"IO SONO TEMPESTA", de Daniele Luchetti: Uma das maiores desilusões desta edição, o novo filme do realizador de "O Meu Irmão é Filho Único" (2007) ou "A Nossa Vida" (2010) fica muito aquém desses dramas (sobretudo do segundo, excelente) ao propor uma viragem para a comédia. A mudança de rumo em si não é o problema, mas esta história, que deve alguma inspiração à figura de Berlusconi, opta sempre pelo maior denominador comum enquanto tenta elaborar uma sátira política e social à Itália contemporânea - num registo que está mais próximo do pequeno do que do grande ecrã. Marco Giallini, na pele de milionário ganancioso e condenado a serviço social, nunca vai além da caricatura (o argumento também não lhe pede mais), e Elio Germano, como sem-abrigo tornado braço-direito do protagonista, é ainda mais desperdiçado depois de ter sido brilhante noutros voos com Luchetti. Mas pior estão as personagens femininas, que dão conta das maiores limitações da escrita em situações quase sempre ridículas. Pelo menos "Anni Felici" (2013), que passou pela Festa do Cinema Italiano há uns anos, revelava algum esforço em construir personagens minimamente intrigantes e em olhar ao redor de forma menos simplista. "Io Sono Tempesta", depois da encomenda "Francisco, O Papa do Povo" (2015), já é só obra de um autor que deu lugar ao tarefeiro mais acomodado...
1,5/5
"NAPOLI VELATA", de Ferzan Ozpetek: Ao contrário da esmagadora maioria dos filmes (ou séries) que têm Nápoles como cenário, aqui a cidade italiana não surge como mero palco de crimes ligados à máfia. E embora não faltem homicídios, por uma vez não resultam de acções da "La Familia". Esse é talvez o elemento mais refrescante do novo filme do autor de "A Janela em Frente" (2003), "Saturno Contro" (2007) ou "Uma Família Moderna" (2010), cuja obra tem chegado às salas portuguesas de forma irregular. Mas é uma filmografia que merecia ser mais vista, uma vez que o realizador turco radicado em Itália tem-se mostrado um artesão habilidoso, movendo-se com desenvoltura entre vários géneros. Desta vez opta pelo thriller com contornos noir, e à partida ostensivamente eróticos... embora com uma classe e arrojo muito acima de subprodutos como "As Cinquenta Sombras de Grey", saga com a qual sugere algumas afinidades na premissa. Ainda assim, o que começa como um one night stand entre a protagonista e um homem misterioso acaba por revelar mais paralelos com o também recente "O Amante Duplo", de François Ozon, embora o retrato de Ozpetek seja bem mais rico a nível dramático, não se esgotando no exercício de estilo vistoso. Além da óptima galeria de secundários, o grande destaque é mesmo Nápoles como personagem de relevo, a quem o realizador dedica uma carta de amor a partir dos ambientes do meio artístico e intelectual. Entre a arquitectura da cidade e ruas tão labirínticas como algumas pistas do argumento, "Napoli Velata" vai moldando um olhar enigmático e sedutor, com tanto de realista como de barroco e surreal, e Ozpetek não perde a mão ao longo de uma viagem desconcertante ancorada na solidão e angústia de uma mulher. Bela surpresa.
3,5/5
"PIRANHA - OS MENINOS DA CAMORRA", de Claudio Giovannesi: Se "Napoli Velata" consegue espreitar recantos pouco vistos de Nápoles, o segundo filme de um dos novos realizadores italianos (sucessor de "Fiore", de 2016) nunca chega a sair de cenários habituais. Em parte talvez nem pudesse sair muito, já que se trata de uma adaptação de um livro de Roberto Saviano, autor de "Gomorra", também adaptado para cinema e TV. Giovannesi assinou, aliás, alguns episódios da série, e tanto essa experiência como a passagem pelo documentário informam o realismo palpável desta saga de iniciação ao crime. Mas embora o realizador traduza um verismo de espaços e figuras com uma solidez assinalável, reforçado pela direcção de jovens actores não profissionais (e todos da região onde decorre o filme), esta história de um grupo de adolescentes decididos a integrar a Camorra não será muito surpreendente para quem está familiarizado com outros retratos do mesmo submundo. A perda da inocência e o mergulho numa espiral descendente são dados adquiridos logo à partida, tanto como as consequências de um ciclo de violência sem fim à vista - que chega a instalar um determinismo confirmado pelo desenlace. De qualquer forma, está longe de ser um mau filme, já que Giovannesi apresenta este relato de ambição e decadência a partir do quotidiano de Nicolas, rapaz de 15 anos e um protagonista suficientemente interessante para que sigamos a sua jornada (e Francesco Di Napoli é uma das boas escolhas de um casting seguro). Só faltou mesmo algum arrojo, sobretudo depois de tantos episódios de "Gomorra" muito mais transgressores e inventivos.