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gonn1000

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Muitos discos, alguns filmes, séries e livros de vez em quando, concertos quando sobra tempo

Mulheres do século XXI

"A AUDIÇÃO" e "O CHÃO DEBAIXO DOS PÉS" foram duas das propostas de uma edição da KINO - MOSTRA DE CINEMA DE EXPRESSÃO ALEMÃ particularmente forte em protagonistas femininas. E nestes casos, ambos com mulheres também atrás das câmaras.

A Audição.jpg

"A AUDIÇÃO", de Ina Weisse: Nina Hoss é sempre um bom motivo para prestar atenção a um filme, ou não tivesse sido protagonista de alguns dos títulos mais memoráveis do cinema alemão recente (com destaque para boa parte da obra de Christian Petzold, de "Wolfsburg" a "Phoenix"). Mas nem ela chega para tornar imperdível esta segunda longa-metragem (depois de "O Arquitecto", de 2008) de uma realizadora que ganhou nome como actriz, embora a sua entrega consiga tornar a jornada da protagonista minimamente interessante. O problema é que este drama centrado numa professora de música que se debate com a frustração - tentando compensá-la com a passagem de testemunho artístico para o filho e um novo aluno, custe o que custar - não acrescenta nada de muito surpreendente a retratos como os de "A Pianista" ou "A Educadora de Infância", ficando aquém da construção fria e calculista do primeiro e da melancolia e desorientação emocional do segundo. Weisse tem um elenco confiável à disposição - além de Hoss, há veteranos como o francês Simon Abkarian e o dinamarquês Jens Albinus ou dois jovens actores promissores -, mas não dá grande espessura às suas personagens nem parece saber muito bem o que fazer com elas. E não ajuda que a realização seja tão competente como indistinta. Quando chega a reviravolta final, o impacto fica, por isso, muito aquém daquele que parece ter sido o desejado.

2/5

O Chão Debaixo dos Pés.jpg

"O CHÃO DEBAIXO DOS PÉS", de Marie Kreutzer: A entrega à vida profissional domina quase todos os dias da protagonista deste drama austríaco, embora aos poucos o espectador vá percebendo que Lola mergulha no trabalho não tanto porque a rotina de workaholic lhe é imposta, mas para evitar ou quebrar laços pessoais e familiares. Até ao momento em que uma nova crise da sua irmã esquizofrénica a obriga a ajustar o ritmo e a reavaliar prioridades, atirando este estudo de personagem de um realismo austero para terrenos do thriller psicológico - percorridos de forma deliberadamente anti-climática por um argumento intrigante. Apesar de juntar um relacionamento lésbico a esta história, Kreutzer não o torna num "tema" da narrativa, da mesma forma que evita a sociologia sobre realidades laborais do mundo empresarial (a protagonista é consultora de gestão), mesmo que deixe um olhar irónico sobre como o patriarcado se impõe mesmo quando há mulheres no poder. Assente na interpretação de Valerie Pachner, óptima numa figura esquiva e ambígua, "O Chão Debaixo dos Pés" documenta sem julgar um dia-a-dia dominado pelo individualismo levado ao extremo, sempre com uma contenção emocional que evita situações-limite. Que o diga o desenlace, talvez até demasiado implosivo e repentino, mas sem deixar de fazer sentido para a personagem que Kreutzer desenhou de forma atenta e inquietante qb..  

3/5

Homens à beira de um ataque de nervos

Uma crise de meia-idade, um mergulho na culpa e um relato amoroso, todos no masculino e filmados por três veteranos que estão de volta este ano: Pedro Almodóvar, Marco Bellocchio e Woody Allen. O resultado é "DOR E GLÓRIA", "O TRAIDOR" e "UM DIA DE CHUVA EM NOVA IORQUE", respectivamente.

Dor e Glória.jpg

"DOR E GLÓRIA", de Pedro Almodóvar: É estranho ver este drama ser tão louvado por vincar um suposto renascimento das carreiras do autor de "Tudo Sobre a Minha Mãe" e de Antonio Banderas. A última colaboração da dupla, em "A Pele Onde Eu Vivo", não só não tinha sido assim há tanto tempo como havia resultado numa obra que ia bastante mais longe no mergulho no trauma e noutros abismos emocionais. E sente-se falta de alguma dessa aspereza num filme que é, às vezes, mais interessante pelos paralelos entre o percurso do protagonista (um realizador veterano solitário e depressivo) e o de Almodóvar, numa espécie de autobiografia não oficial, do que pela(s) história(s) que conta.

Há várias sequências fortes, entre confrontos profissionais, amorosos e familiares, e a direcção artística é das mais esmeradas e facilmente reconhecíveis do cineasta espanhol - com destaque para um apartamento luxuoso, onde decorre a acção no presente, e uma cave transformada num lar, nas cenas que recuam à infância. Mas também há uma facilidade nem sempre muito credível (e até inesperadamente ligeira) na superação dos conflitos - da crise de inspiração ao mergulho nas drogas -,  que deixa o todo aquém da urgência de um testemunho como "Má Educação", talvez o filme de Almodóvar cujo argumento mais se aproxima deste olhar sobre (des)encontros no masculino.

De resto, sim, Antonio Banderas é convincente e comovente enquanto personagem-espelho do realizador (acabou premiado como Melhor Actor em Cannes) e Penélope Cruz volta a dar-se bem na nova colaboração com alguém que sabe sempre tirar o melhor dela (mesmo que aqui não acrescente muito a parceiras anteriores). Um reencontro a saudar, é certo, mas distante de uma epifania.

3/5

O Traidor.jpg

"O TRAIDOR", de Marco Bellocchio: Um dos melhores biopics do ano (senão mesmo o melhor, merecidamente nomeado para a Palma de Ouro em Cannes) é também uma prova de que ainda é possível fugir aos estereótipos do "filme da máfia". E o retratado, Tommaso Buscetta, merece figurar entre os anti-heróis (ou vilões?) mais fascinantes dos últimos tempos, já que Bellocchio nunca olha de cima para o criminoso tornado informador numa denúncia histórica que atingiu, como poucas, a Cosa Nostra (a máfia siciliana).

Ao longo de quase duas horas e meia, esta combinação de drama e thriller recusa uma narrativa polida e formatada,  percorrendo vários anos da vida do protagonista e recompensando a atenção do espectador (sem se preocupar com uma insistência de explicações de contexto). Implacável na radiografia de um sistema corrupto, o realizador veterano viaja aqui entre a sua Itália natal, o Brasil e os EUA com uma fluidez que só não se mantém em duas ou três das muitas cenas de tribunal - cuja atmosfera de selva civilizacional, tão trágica como cómica, está entre as maiores singularidades do filme mas poderia sair reforçada com alguma economia narrativa. Em compensação, não faltam sequências de recorte superior, sobretudo momentos estratégicos de suspense e acção que mostram o octogenário num pico de forma - caso de uma cena de chantagem num helicóptero e, sobretudo, de um acidente automóvel filmado com um cruzamento invejável de criatividade e adrenalina.

Além deste olhar de cinema duro e adulto como poucos, "O TRAIDOR" eleva-se pela interpretação de Pierfrancesco Favino (actor que já tinha sido decisivo em "Suburra" ou "Saturno Contro"), capaz de moldar o protagonista enquanto figura ambígua, magnética e indecifrável - mas empática q.b.. E assinala aqui um dos grandes regressos de 2019, depois do menos entusiasmante "Sonhos Cor-de-Rosa" (2016).

4/5

Um Dia de Chuva em Nova Iorque.jpg

"UM DIA DE CHUVA EM NOVA IORQUE", de Woody Allen: O título até parece ter qualquer coisa de premonitório, tendo em conta que esta comédia é o exemplo mais recente de um realizador a chover no molhado. Woody Allen pode ir buscar novos rostos para o seu cinema, mas o tema e a abordagem continuam os mesmos de sempre, num filme new yorker a deixar a enésima carta de amor à cidade que nunca dorme.

O brilho da direcção de fotografia de Vittorio Stotaro é inegável, embora saia desperdiçado numa historinha de unir os pontos sobre um jovem casal universitário durante uma visita atribulada a Nova Iorque. Timothée Chalamet dá corpo ao protagonista erudito e neurótico, seguindo um modelo em tempos encarnado por Allen, que tem aqui direito a uma lição de vida. Elle Fanning interpreta a sua namorada, cujo contacto (e deslumbramento) com figuras da elite intelectual lhe baralha as prioridades. Mas nenhum destes arcos narrativos é especialmente aliciante, com desvantagem para o dela, basicamente um concentrado de encontros com figuras caricaturais que não vão além de manobras de sedução. Fanning, de resto, também não consegue dar grande espessura à sua personagem, ficando-se pelo refúgio em tiques e gestos, ainda que o principal culpado seja um argumento genérico.

Nem os diálogos são muito memoráveis, ficando o factor surpresa limitado a Selena Gomez, com o desempenho menos afectado e uma das poucas personagens interessantes, e a uma cena do protagonista com a mãe, perto do desenlace, com uma carga emocional que parece pertencer a outro filme (mais bem escrito e interpretado). Apesar da polémica à volta da estreia (descartada nos EUA), "UM DIA DE CHUVA EM NOVA IORQUE" é das obras mais inócuas do seu autor.

2/5